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Gata Negra #29: Atividades noturnas

Gata Negra #29: Atividades noturnas

França. Prostituição. Violência. Amor. Descobertas. Sexo. Crises. Surpresas. Mulheres. Traição. Nesse mundo que a Gata Negra realiza mais um roubo: o modelo de um catalisador.

Madrugada em NYC

Duas mãos apertam fortemente o pescoço de Felicia. Ela se debate, tenta arranhar os braços do agressor; em vão, ela está sem as garras. Cada vez mais forte, cada vez mais rápido. Seus olhos tentam identificar quem lhe machuca. Nada. Sua respiração fica pausada… seus olhos fecham devagar.   

Testa, ombros, pernas suadas. Num grito Felicia abre os olhos e se vê deitada na cama, descoberta, com roupas íntimas. Molhadas. Mais um pesadelo.   

Estes sonhos ruins tornaram-se comuns desde seu conflito com o Homem-Aranha na Times Square e pioraram depois do assalto ao Museu da Sociedade da Justiça América, quando suas crises por causa do poder também se intensificaram.   

Cambaleante, Felicia vai à cozinha, abre a geladeira e toma leite. Em seguida, vai para a sala e abre a janela. O vento gelado lhe toca o corpo.   

“Mais uma noite mal dormida. Ainda sinto o peso da mão no meu pescoço…”  

Com os braços para fora, ela pensa em prováveis agressores. A lista não é muito grande, mas assusta. Todos aqueles que tiveram algum contato com ela surgem em ordem não-cronológica. Peter, o Rei, T’ai Li, Elektra, Lápide…  

Cabisbaixa. Uma lágrima lhe corre à face. Uma dor no coração. Felicia está se convencendo de que ser a Gata Negra não lhe trará um futuro. Ainda não lhe trouxe nada. Mas ao mesmo tempo… o que ela seria senão a grande ladra?   

“Quero sumir. Cada vez mais a confusão aumenta e como uma bola de neve soterra o meu raciocínio. Para piorar tem o lance do policial… Semeghini… que me falou sobre o Camaleão envolvido em algo com diamantes… Eu roubei uma pedra diferente para Julia num desfile de moda e…”  

O sorriso.   

“O Camaleão deve estar envolvido no sequestro da filha de Julia! Ela tem que saber disso!”   

A incerteza sobre o futuro como ladra não mais existe.   

“Pensando bem… se eu contar para ela posso pôr a vida de Rachel em perigo… mais ainda. E eu também posso estar enganada, apesar de ser pouco provável…  

Já é dia e no sofá Felicia conseguiu dormir.   

Não por muito tempo. Tem alguém lá fora.   

Ela só teve tempo de vestir um moletom para abrir a porta.   

- Julia?!   

- Posso?   

Julia entra e é seguida por Felicia, que fecha a porta.   

- Preciso de você.   

- Claro. O que ouve?   

- Um novo trabalho.   

- O que houve com você? Algo nas costas?   

- Dormi de mau jeito.   

“Ultimamente é o que mais acontece comigo e com Michelle…”  

- Como está Rachel?   

- Bom… melhor agora com este que é o último trabalho.   

- Depois disso sua filha estará livre?   

- Sim! Estou muito feliz! – abraça a ladra.   

- O que tenho que fazer? – Felicia se afasta.   

- Ir para Nice, na França, recuperar algo que um desertor das forças armadas roubou.

- Isso está ficando quente! Quando embarco?   

- Ainda hoje. Lá você vai encontrar um contato que lhe dará mais informações.   

- Qual a peça?   

- A planta de um modelo catalisador que está impresso em papel fino e antigo, e que precisa ser transportado com muito cuidado.   

- Desastrosa é algo que não sou…  

Julia estende a mão com uns papéis.   

- Aqui estão as passagens e as informações do seu contato.   

- Fica tranquila, Julia. A Gata Negra é a amigona da vizinhança!   

Julia não ri.   

- Você já foi mais bem humorada, Julia.   

- Como sorrir com filha nas mãos de um lunático?   

“Eu aprendi…”  

- Por sinal. Lembra de quando roubei um diamante num desfile de moda?   

- Sim, o que tem?   

- Para quem você entregou?   

- Por quê?   

“Conto ou não conto?”   

- Vamos, me responde. Por quê?   

- Hum… talvez pudesse conseguir uma pista sobre os sequestradores.   

- Não, Felicia. Não faça isso. Não quero a vida de Rachel mais em perigo ainda!   

Aeroporto particular no continente.

Ocaso.

O caminho era conhecido. O galpão, também. A cena, mais ainda: um homem encostado num muro, fumando.   

- Tanta coisa melhor para você colocar na boca…  

- Felicia! Amor da minha vida! Que surpresa! Vai viajar? Mas eu não fui informado e…

- Cala a boca, Charlie. Odeio homem chato.   

Ele joga o cigarro fora.   

- Eu fiquei surpreso…  

Felicia o beija à boca.   

- Nossa! Ainda bem que apareceu. Tenho novidades.   

- Mas antes me fala uma coisa: me dá uma carona?   

- Eu até estranhei te ver aqui… o casal não me informou que viajaríamos hoje.   

- Ninguém sabe.   

- Pra onde?   

- Nice, França.   

- Tou indo pra Itália com uns ilustres passageiros. Acho que posso fazer uma escala por lá.   

- Não sabe como me deixa feliz, Charlie.   

- Vem, vamos entrar.   

Horas depois todos cruzavam o Atlântico. Felicia viajava na cabine depois der fazer serviços como comissária de bordo.   

- Quais as novidades? Me traindo muito?   

- Você sabe que eu te amo, Felicia. Você é a única mulher que eu…  

 - Ih, Charlie…  

- Eheheh! Então, pega meu celular.   

- O celular mesmo?   

- Não provoca!   

Felicia segura o aparelho telefônico.   

- Tem uma coisa aí que você vai gostar. Uma foto.   

- Se for você pelado nem vai ter graçAIMEUDEUSDOCÉU!   

- Não falei que cê ia gostar?   

- Como conseguiu essa foto?   

- Depois que você se mostrou desconfiada eu me prontifiquei a te ajudar. Eis a pessoa que sempre acompanha a mulher quando você viaja.   

- Eu sei quem é… mas não lembro quem é! Ahahah!   

- Você vai ter muito tempo para pensar. Agora tenta dormir um pouco.

Aeroporto Nice Côte d'Azur. Nice, França.

Nice. Cidade de glamour, capital da Riviera, foi fundada pelos gregos. Ensolarada 300 dias por ano, tem muitos parques, museus, monumentos e praias (de pedras, e não de areia).   

Sob o pretexto de um problema na aeronave, o avião pousou na cidade francesa. Antes de se despedir, Charles disse que veria Felicia mais breve do que ela imaginasse.   

Cruzando o pequeno saguão, Felicia vê um homem segurando uma placa com seu sobrenome escrito.   

- Como foi o voo, senhorita Hardy?   

- Ótimo, Frontin. Não tenho tempo a perder, me fale tudo.   

“Que testa larga que ele tem…”  

Nova York

- Essa dor nas costas…  

- Acha que a ladra está desconfiada?   

- Não. Mas eu não posso vacilar. Se bem que quando ela me trouxer a planta com as informações sobre os raios catódicos, ela poderá morrer.   

- Mas não faltam outras informações?   

- Sim… só que serão serviços dados por “Michelle”. Julia voltará para a Costa Leste com a filha. Então, ela morrerá a serviço do FBI.   

- Esses raios catódicos? Como influenciam na sua pesquisa?   

- No interior de um tubo faz-se o vácuo até chegar a uma pressão de 0,01 de Hg. Ao conectar o tubo a uma fonte de eletricidade de suficiente potencia, produz-se no tubo uma descarga. Do cátodo (-) saem os raios catódicos, eletros em rápido movimento de translação (propagação retilínea). Só que para isso preciso de detalhes sobre radioatividade artificial, uma bateria e…  

- E a peça do Museu daqueles heróis?   

- Meus estudos confirmam que pode dar certo.   

- Não entendo.   

- Não precisa. Vamos, temos que entrar em contato com Frontin.   

Nice, hotel

- Felicia, quero que saiba que o desertor está sempre acompanhado por um segurança, e que a peça está dentro de uma maleta algemada ao próprio pulso.   

- Darei um jeito no segurança.   

- Mais fácil eu fazer; ele é gay.   

- O que leva um homem a ter um segurança gay?   

- Dieudoneé, seu alvo, gosta de farrear, ter mulheres… Vieux impede sempre que algo de ruim possa acontecer com o patrão. Desde assassinato… a roubo.   

- Para mim isso é conversa furada. Como vou encontrá-lo?   

- Como disse, ele gosta de farra… e hoje à noite Dieudoneé estará numa confraternização.   

- Nem quero saber…  

- Numa casa noturna.   

- Boate?   

- Casa de massagens, de um modo simpático para não te constranger.   

- Hum… que bonitinho. Isso quer dizer que me tornarei… uma garota de programa?!   

- É um caminho.   

- Uau! Vamos, Frontin, preciso me preparar para a noite. Vai ser divertido colocar meu lado fogoso pra fora!   

- Nunca fez isso?   

- Para um público desconhecido? Não. Só com meu homem.   

- Você tem um?   

“A última intensa foi com Peter… depois de lutarmos juntos contra o Abutre…”[1]

- Faz tempo que minhas aventuras… qual é, Frontin? Vai procurar o que fazer!   

- Eu vou fazer o contato para que você não tenha nenhum problema para entrar na boate, camarim, essas coisas. Você vai ser a melhor dançarina de Apollon Alphonse, o dono da casa de massagem!   

- Lá é bom?   

- A Esme? Um dos melhores locais da Europa! Só pra ter ideia, o nome significa “com muito amor” e só quem tem acesso são multimilionários. Há pouco tempo o sócio de Apollon foi preso por financiar uma rede de prostituição e tráfico de mulheres. Foi um escândalo que repercutiu na imprensa internacional. O nome dele é Mikhail Prokhorov [2], com uma fortuna pessoal avaliada em US$ 7,6 bilhões, e é o 10º cidadão mais rico da Rússia, segundo ranking publicado pela revista Forbes. Ele foi detido no luxuoso centro de esqui alpino francês de Courchevel…  

- Interessante… Pode ser que eu mate dois ratos num ataque só.   

- Não entendi.   

- Piada interna.   

Boate Esme, poucas horas para a madrugada

Antes de entrar na boate, Felicia, ainda no hotel, pensava em como poderia parecer com uma stripper. Ela se olhava no espelho e gargalhava, com os atributos físicos que possuía.   

“Tá, sou “loura”... tenho um belo corpo… sou esbelta, pra não dizer outra coisa… mas preciso de algo… uma marca… Já sei!”   

Ela corre até a mesa onde fica o telefone e pega uma caneta esferográfica preta. Abaixa mais a calça e a calcinha, e escreve quase na virilha a palavra “azar”. Em seguida ela pega um isqueiro e passa sobre a “tatuagem” diversas vezes, para assim aderi-la mais à pele.   

“Agora sim!”   

Ao sair do hotel, com a blusa branca, a calça jeans meio surrada e uma bolsa, Felicia não relutou ao aceitar a ajuda de Frontin: um sonífero para ser usado caso algo pudesse dar errado. Além do uniforme, claro.   

“Como se eu pudesse atirar e matar com esse comprimido, ahahah!”   

Entrar no clube não foi difícil, graças às coordenadas passadas pelo contato francês. Claro que ela se sentiu um pouco incomodada quando algumas pessoas comentavam algo sobre “lá vai mais uma prostituta”, ou quando ela entrou no camarim e se viu diante duma realidade pra ela nunca existente no seu mundo fantasioso de polícia e ladrão.   

Quando disputa um espaço no espelho é que Felicia vê que naquele mundo existe amizade, ao menos quando algumas garotas se beijam, se depilam, se acariciam e se mostram prestativas com a novata platinada.   

- Primeira vez, né? Veio de onde?   

- Estados Unidos – diz Felicia, retraída.   

- Não fique tímida! Aqui não é lugar para isso. E quando você subir no palco se imagine em casa, tomando banho, se preparando pro seu grande amor!   

“Se Peter souber disso... ahahah!”   

Uma das garotas se aproxima e entrega o biquíni padrão para Felicia.   

- Veste! Sua hora tá chegando.   

Ao se despir ela procurou ser discreta; afinal, não tinha nada de anormal ficar nua na frente de outras garotas, mesmo que elas estejam se beijando, acariciando…  

- Que tatuagem linda! Meninas, venham ver que linda!   

O azar até que, nesse momento, foi um sinal de sorte.   

Algumas dezenas de minutos depois uma garota que entra sorridente chega gritando que Felicia é a próxima.   

Tensão.   

Existem diversas formas para se chegar ao palco da Esme. Desde saindo de uma piscina até rolando numa espécie de monte de chocolate, onde geralmente duas mulheres “brigam”. Felicia preferiu ser mais discreta, afinal, como era sua primeira vez, não poderia exagerar e acabar se tornando patética. Ela preferiu descer pelo pilar, algo como o mesmo que os soldados do corpo de bombeiros usam quando iniciam a missão para sair do quartel.   

Ela não desceu da forma comum; e sim, de cabeça para baixo, ao som de uma música eletrônica que acompanhava seus batimentos cardíacos.   

Antes de seus cabelos platinados tocarem o chão, a Gata girou o corpo com as pernas erguidas, segurado o pilar com apenas uma mão. Assim deslizou ate sentar naquele frio palco.   

As pessoas ali presentes assistem, boquiaberto, à essa simplicidade inédita na Esme. Inclusive Apollon, que coçava o queixo, como se se perguntasse algo.   

Rapidamente ela se levanta, suas pernas fortes de músculos torneados a auxiliam neste processo. O corpo faz movimentos delicados, mas profundos, todos aproveitados da lembrança de seus atos nos assaltos ou em conflitos com amigos ou inimigos.   

Os olhos fecham e ela se lembra de Peter Parker. Da última vez deles juntos, ainda no escritório da Cat’s Eye, no Soho.   

Uma tarde intensa.   

Ainda de olhos fechados ela se delicia com o momento, rindo, ignorando a presença de todos e relembrando o strip que já fez para o homem que ama. Foi discreto, verdade, mas a consequência foi avassaladora.   

Em meio a tanta empolgação, Felicia não vê quando uma outra garota surge e arranca a parte de cima do biquíni. O único reflexo é puxar a garota pelo cabelo e arremessá-la para fora do palco, no meio do ringue de chocolate. Na sequência, continua dançando, escondendo os seios.   

Assustada. Agora estragou tudo.   

Não.   

Aplausos.   

Felicia volta a se animar e mesmo sem retirar as mãos que lhe cobrem o corpo, se insinua, sacudindo os ombros, se aproximando mais da plateia.   

Alguns homens chegam perto e colocam notas altas de dólar e de euro na parte de baixo do biquíni, e comentam, vibram, quando leem a tatuagem na virilha. Uma sensação nova percorre o corpo de Felicia, que ao mesmo tempo em que ela quer gritar, sair correndo e tomar um banho, ela sente prazer com a situação.   

Abaixa os braços.   

Agora ela desfila.   

Como se fosse a única mulher do mundo.   

Cabeça erguida, movimentos cadenciados.   

Até avistar a vítima: Dieudoneé, com a maleta acorrentada ao pulso, acompanhado pelo másculo Vieux.   

“Ali… vamos lá, Felicia, é hora do show!”   

Ela salta, se alonga, coloca a perna estirada, na vertical, fica de bruços, rola, usa o pilar para seguir se movimentando, joga os cabelos para trás, faz caras e bocas.   

Vieux se aproxima de Apollon, por um curto período de tempo, e comenta algo. As luzes piscando e a fumaça não permitem que Felicia leia os lábios deles, mesmo com a função de aproximação da sua lente estar ativada.   

Felicia recebe o sinal de que sua apresentação está terminando. Ela se aproxima mais da plateia, de frente arranca a parte de baixo do biquíni e volta para o camarim, girando a peça na ponta do dedo.   

As garotas pulam sobre ela, parabenizando a apresentação. Felicia se veste rapidamente, para começar a colocar o plano em prática, mas é interrompida por Apollon, que a segura pelo braço.   

- Não me lembro de você.   

Susto.   

- Meu primeiro dia… quem me indicou foi… Frontin.   

- Ah, aquele testa larga sempre me surpreende… mesmo assim seu rosto me é familiar. Esteve em Cingapura esses dias?   

- Não… nunca fui á África.   

“O jeito é dar uma de burra...”   

- Entendo… enfim, você deve saber como funciona o esquema da casa, não é?

- Perfeitamente, foi tudo me passado por Frontin e pelas garotas, não é garotas?   

Todas dão gritinhos histéricos.   

Apollon faz um breve sinal e todas se calam juntas.   

- Muito bem, tem um cliente especial que ficou muito impressionado com sua performance. Na verdade, até eu me surpreendi. Foi uma nova versão do strip inicial que… desculpe, é bobagem discutir isso com você. O que estou querendo dizer é o seguinte: satisfaça aquele cliente para você se dar bem. Caso contrário…

- Não se preocupe. Terei o maior prazer. Literalmente falando.   

Felicia, com a bolsa, dá às costas e vai para o bar encontrar Dieudoneé, que, para variar, está acompanhado por Vieux.   

Ao se encontrarem os olhos se cruzam, mas rapidamente buscam destinos opostos. Os verdes de Felicia acompanham a comprimento da algema, do pulso à maleta. Os cor de mel do francês sobem do umbigo ao busto. Os olhos negros do segurança segue os inquietos da ladra.   

- Vamos? Não temos tempo a perder. Por favor. - estira o braço.   

Segurando o alvo, o misto de medo e excitação fazia com que Felicia, muitas vezes, se apoiasse mais no homem que roubou o governo norte-americano.   

Na limusine, Felicia se preocupa. Não apenas por estar entre quatro paredes com um segurança gay e um tarado algemado. E sim, por não saber para onde está indo.   

- Champanhe? – Dieudoneé ergue como um brinde.   

Felicia se serve.   

- Desculpe minha indiscrição, mas esqueci de te dar os parabéns pela apresentação. Há anos eu frequento a Boate Esme e não me recordo de ter visto um show e ter ficado da forma como fiquei.   

“Ele precisa morder a isca, né? Ok…”  

- Que forma?   

Dieudoneé e Vieux trocam olhares e sorrisos, pensando “como ela é ingênua”, ao tempo em que Felicia se diverte, pensando “como eles são ingênuos”.   

O segurança, de frente para a ladra e para o alvo. O casal estava bem junto, as pernas quase escoravam umas às outras.   

- Para onde vamos?   

- Não importa. O único que interessa é que você será minha por um bom período. Pelo preço que paguei…  

Felicia ri e bebe o conteúdo de vez. Quando reconhece que está chegando ao aeroporto, mostra o copo vazio, dando a entender que precisa de mais álcool. E de ajuda, também.   

A mão de Dieudoneé repousa sobre a coxa esquerda de Felicia. Vieux vira a cara.   

No caminho até o aeroporto não aconteceu nada de anormal, além de silêncio.   

Ao entrarem no avião foi, de uma certa forma, um dos momentos mais felizes de Felicia há anos. Quem estava na cabine era seu amigo-amante Charles.   

Uma discreta troca de olhares e os ombros da ladra ficaram menos tensos, já que agora ela tinha como dar um jeito no segurança.   

Vieux deixa o casal se acomodando e vai para a cabine.   

- Antes quero te explicar algumas coisas. – diz Dieudoneé.   

- Tipo?   

- O que você pode e o que você não pode fazer.   

- Pensei que não houvesse regras entre quatro paredes.   

O alvo não esconde a excitação.   

- Algumas coisas me incomodam. Como beijo na boca.   

“Ufa!”   

A lista das “coisas proibidas” foi dada no tempo em que o avião passou a se preparar para decolar: a manobra.   

- Fica em pé.   

- Claro. – Felicia se levanta e se aproxima.   

- O que você tem desenhado na virilha? Não consegui ver.   

Felicia desabotoa a calça e abaixa o zíper.   

- Hum… Azar… que te levou a fazer isso?   

- Digamos que eu seja uma pessoa muito sortuda com a vida que levo.   

Dieudoneé faz cara de desentendido e começa a se aproximar da virilha. Ele não se contém beija a tatuagem. Felicia coloca as mãos nos ombros dele e o empurra devagar.   

- Calminha…  

- Tira tudo, vamos.   

Felicia dança um pouco, mas não fica completamente nua. As peças íntimas ainda lhe cobrem o corpo. Ela o segura pela cabeça e o esfrega na barriga, cintura, coxas.   

- Preciso beber… sexo só presta com bebida.   

- Mas você disse que odeia coisas artificiais durante o ato!   

- Você está me enlouquecendo.   

Felicia vai à uma espécie de bar dentro da aeronave em silêncio, para descobrir onde estão Vieux e Charles.   

“Na cabine! Ótimo!”   

Ela enche um copo, coloca algumas pedras de gelo, enquanto Dieudoneé a chama desesperadamente. Felicia coloca o sonífero na bebida e volta ao local sem a parte de cima da peça íntima, com a garrafa na boca, como se bebesse, e o copo ela entrega pra Dieudoneé.   

- Hoje você vai ver como sua vida era azarada antes de passar por mim!   

Dieudoneé segura o copo e dá um longo gole, acabando com o conteúdo. Rapidamente, Felicia senta sobre ele e derrama o álcool na boca, pescoço, busto e enche o copo novamente. Felicia lhe morde o queixo e derrama mais whisky sobre os dois.   

“Preciso variar esses trabalhos… outro dia eu tava na mesma posição com um químico holandês… apelando pro sexo para conseguir meus objetivos… que desespero… deve ter outra forma… Ahahah!”  

O corpo de Dieudoneé vai caindo lentamente até o encosto da poltrona. Felicia gira a cabeça, mexe o quadril, pula sobre ele... mas nada. Ele adormeceu. Ela sorriu.   

A maleta estava todo o tempo algemada. As chaves? Com Vieux.   

“Muito bem… tá na hora do pau! Quem é mesmo que fala assim????”   

O uniforme preto de plumas braças agora é a peça que lhe cobre o corpo. As unhas são ativadas numa rápida flexão nos dedos.   

Seu peito enche de ar. Gata Negra. Nada importa.   

Ela vê Vieux se insinuando para Charles, na porta da cabine.   

Felicia corre. Vieux se assusta com a aproximação daquela mulher de roupa preta, cabelos prateados e mascara no rosto.   

- Nunca mexa com homem meu! – Felicia derruba Vieux com uma voadora.   

Vieux, se levantando, não sabe o que fazer. Se corre para ver como está Dieudoneé, se continua paquerando Charles ou se parte pra briga com a ladra.   

Logicamente ele escolheu a terceira opção.   

Vieux vai pra cima de Felicia. Charles manda ela ter cuidado e diz que não pode sair da cabine. O segurança rasga o terno, furioso. Apenas de calça e sapatos sociais agora.   

- Nossa… que violência!   

- Te prepara para levar a maior surra da vida, sua vagabunda!   

- Você não se compara ao Venom, meu caro.   

Vieux grita e todos os músicos do seu corpo se contraem. Aquele homem de mais de 1,90m e 100 quilos de massa muscular finalmente intimidou a ladra de 1,75m e 60 quilos (aproximadamente…).   

Ele distribui socos seguidos enquanto Felicia tenta esquivar naquele apertado espaço entre algumas poltronas.   

- Eu desconfiei de você desde o inicio! Muito estranho uma novata ser tão destacada assim. Você enganou Dieudoneé. Você e Apollon, na verdade. Merecem morrer!   

Um soco na parte interior da coxa. Mesmo sendo grande, ele era ágil. Felicia tomba.   

“Argh! Que doooooooooooooooor!”   

Ela coloca uma mão na perna e outra na barriga, que agora dói, e grita. Lágrimas vazam dos olhos. Os olhos. Agora eles brilham e a garganta arde.   

O avião treme. Cheiro de coisa queimando. Fumaça em uma das turbinas.   

- Isso é o que acontece com putas como você! – na hora em que vai desferir o chute na cabeça da ladra, Charles o atinge, e o derruba, com um golpe de extintor de incêndio na cabeça. O corpo de Vieux cai ao lado de Felicia.   

A ladra se levanta, ainda com a mão na barriga.   

- Charles… o avião…   

- Não se preocupa. Como você está?   

- Tonta. Meu poder do azar está descontrolado… que besteira, eu nunca o controlei… mas as consequências físicas estão piorando.   

- Vai deitar que eu dou um jeito. Não estamos longe do Aeroporto de Nice.   

- Antes…  

Felicia revira os bolsos da calça de Vieux e acha a chave da maleta. Vai até o corpo de Dieudoneé, que ainda repousa num sono profundo. Num rápido movimento a maleta se separa do pulso e agora está guardada na bolsa da ladra. A algema agora prende um pulso e um apoio da poltrona.   

O avião treme menos, mas a fumaça ainda pode ser vista. Charles está assobiando, e não fumando. Isso é interpretado por Felicia de uma maneira simples: tudo está normal.   

Um breve cochilo e Charles já despertava Felicia.   

- Vamos dorminhoca, Nice te espera.   

Bocejo.   

- Charles… - beijo na boca – obrigada por me ajudar.   

- Não precisa agradecer. Estou retribuindo o que você faz por mim.   

Felicia sorri e o aperta a bochecha.   

- Eu preciso ir. Peraí! O que você está fazendo dentro deste avião? Você não ia para a Itália?   

- Ih, uma confusão daquelas. Na nossa próxima viagem eu te explico.   

- Nada disso, Charlie. Quero saber agora.   

- Desculpa, mas eu tenho que consertar o avião e você precisa decidir o que vai fazer com a maleta.   

- Só por isso não te mostro minha tatuagem!   

- Eu já vi. Quando você veio pegar whisky.   

- Claro… você estava de namorico com o segurança… ahahah!   

- Vem cá! – Charles a puxa com violência e a beija – Vamos ver o que essa tatuagem vai fazer comigo… se vai agir ou não como afrodisíaco.   

Saguão do Côte d'Azur

O homem de testa larga, ansioso, anda de um lado para o outro. Do outro lado, a mulher de calça desbotada, blusa branca, cabelos platinados e bolsa se destaca pelos passageiros.   

- Frontin! Saudades?   

- Você quer me matar do coração?   

- Estou com a encomenda.   

- Como estão Dieudoneé e Vieux?   

- Dormindo. Dei uma canseira neles. Acredito que eles nunca mais voltarão na Esme.   

- Por que?   

- Nada… Vem, quero te passar a maleta.   

Os dois caminham para a porta principal do aeroporto.   

- Você viu o que tem aí dentro?   

- Vai ficar sem saber, Frontin.   

- As gatas são curiosas.   

Ela apenas ri e passa a maleta.   

- Tome, Felicia. Você não poderia deixar de ser agraciada por este perfeito trabalho.   

- Que é isso?   

- Vai voltar para a América de navio. Um belíssimo cruzeiro. Bon Voyage.  

Oceano Atlântico

Fazia tempo em que Felicia Hardy não fazia uma viagem tão prazerosa. Um cruzeiro. A última faz muito tempo… quando ela precisou fugir do Estrangeiro [3] depois de se apaixonar "novamente" por Peter Parker. Claro que ela o decepcionou, como sempre. Mas ela também o ajudou. Como sempre.   

Foi justamente perdida na imensidão do mar que sua cabeça voltou a funcionar. Algumas coisas ela já descobriu, como o fato de o Camaleão estar envolvido, de alguma forma, no sequestro da filha de Julia Carpenter.   

“O que eu não entendo é que ela e Michelle estão com problemas nas costas…”  

O fato de Charles estar disponível para uma viagem à França mesmo ele tendo que ir para a Itália também a incomoda.   

“Mané deixar de ser a Gata Negra! Agora é que o negócio vai melhorar! Tô chegando perto… tô sentindo cheiro de satisfação! Falta apenas lembrar a pessoa da foto que Charlie me deu para…”   

Ela corre e pula no mar.   

***

Notas do autor

[1] Este encontro da Gata com o Aranha versus o Abutre aconteceu na edição #09 da Gata Negra!   

[2] A história sobre a prisão de Mikhail Prokhorov, multimilionário russo preso por prostituição pode ser conferida aqui.    

[3] Isso aconteceu em o Homem-Aranha #98, ainda pela Abril Jovem, ao preço de Cr$360,00.

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