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Gata Negra #33: Distrações fatais 3/7

Gata Negra #33: Distrações fatais 3/7

Felicia está mais próxima de desvendar o segredo para a criação da bomba nitro-nuclear. E enquanto o Camaleão liberta Julia Carpenter, a Gata Negra descobre uma grande mentira envolvendo Charles!

Bahrein

Seguindo apenas a indicação daquela luz verde, em formato de cruz grega, Felicia, meio à escuridão do deserto, chega a um local que lhe faz abrir os olhos e a boca. 

A cruz grega está no topo de uma igreja, cravada no solo seco. A construção está a quase 20 metros abaixo da superfície, e tem a mesma forma do crucifixo. Para chegar até ela, Felicia precisa descer uma rampa. 

Ela não escuta nada, apesar de ver luzes mudando de cor a cada segundo. 

Antes de entrar na igreja, ela admira os contornos das pequenas janelas e os detalhes em alto-relevo esculpidos nas pedras que a ergueram. 

“O que será isso? Muito quieto… eu preciso encontrar alguém para que me ajude a voltar para os Estados Unidos…”

Assim ela entra. 

A cada passo largo vai descobrindo o que é aquele ambiente. Ou era. 

Mesas de sinuca, quartos íntimos, mesas e cadeiras, aparelhagem de som e de iluminação. 

“Um globo prateado! Que coisa mais antiga!” 

Nem esse pensamento humorado tirava o medo da ladra. 

Ela para, então, no centro da pista de dança, algo como um enorme tabuleiro de xadrez, onde os blocos pretos e brancos piscavam numa sequência hipnótica. 

“Tem algo aqui… esse cheiro…”

Felicia só consegue identificar o que viu com o auxilio da iluminação disco dessa casa de shows. Então, seu olhar cerrado denuncia que uma visão da lente será acionada. 

“Vejamos… preciso procurar por alguém… nem que seja um barman para me servir um whisky!” 

Ao ter as pupilas dilatadas e a cor das lentes alterada, Felicia emite um grito aterrorizante. A cada local explorado visualmente, lágrimas rolavam dos olhos e mais pânico era exaltado com a sua voz. 

“Estão… todos… mortos!” 

Ela põe-se a correr, desesperada. Em cada lugar por onde passava, via pessoas ensanguentadas. No banheiro, homens com as calças nos joelhos caídos frente ao vaso. O mesmo com as mulheres. 

Correndo e entrando nos quartos íntimos, homens, mulheres, casais… todas as formas de prazer foram interrompidas pela morte. 

Mais gritos, mais lágrimas, mais correria. Mais enjoo.

Finalmente ela chega a um corredor que termina com uma escada de pedra lascada. Ali o cheiro do sangue não incomodava tanto. 

“Essas pessoas… parece que foram mortas há pouco tempo.” 

Ao chegar no primeiro degrau da escada, se assusta com a música dançante que começa a tocar. Suas pernas tremem. 

“Ah, meu Deus! Eles ainda estão aqui!” 

Uma nova corrida, dessa vez para onde a escada a leva. 

Algumas vezes, enquanto subia, os objetos caíam das suas tremulas mãos, mas logo eram recuperados. 

As lentes, ainda acionadas, revelavam que o caminho era apenas paredes e degraus. 

As unhas desprotegidas ralavam nas pedras. 

Um pouco mais à frente, uma porta. 

Sem raciocinar, ela dá uma voadora. O que a separava do desconhecido agora estava no chão. 

Muita areia e poeira. 

Felicia encosta na parede antes de entrar. Tossindo, tenta se acalmar. 

Os corpos ensanguentados não lhe saem da cabeça. 

Saudade de Charles. De Peter. Ela está sozinha. 

“Mais uma vez…”

Respiração profunda e ela adentra à sala. As luzes rapidamente se acendem. A função da lente é desativada e ela sente o corpo relaxar. 

“É quase uma igreja dentro de uma igreja! Bancos, altar central, imagens de santos católicos e um Cristo na cruz…” 

A ladra inicia uma perícia no local, tanto que deixou de se preocupar com a música – que não mais ouvia – e com a suspeita de que os assassinos ainda procuravam por ela. 

Simplesmente porque ela, depois de muito tempo, voltou a sentir paz. Um sorriso doce, o mesmo de quando ela era criança, estava estampado em sua face. 

Ao se aproximar do altar, não se conteve e ajoelhou. 

“Que energia… divina!” 

No altar, também em pedra lapidada, estava uma antiga bíblia com capa de couro já desgastada. Abaixo dele, uma arca. 

Apesar de todo aquele êxtase, Felicia não se conteve e puxou a arca fechada com um ferrão-cadeado. 

Seus dedos alisavam aquele baú empoeirado e suas unhas – bem desgastadas – limpavam os baixo-relevos dele. E veio a surpresa. 

“Esta arca está repleta de marcas… das mesmas marcas que estão no bastão da cítala…”

Ao se afastar para olhar melhor o objeto encontrado, fixa o olho na enorme imagem de Jesus na cruz. Cada lado da peça tinha um bloco de pedra com letras escritas, algo como um chocolate em barras.

Na placa do lado da mão direita da imagem de Cristo está escrito:

| E | AC | AL | AA | AO | AI | AT | AG | AE | AI | A |

E na barra ao lado da mão esquerda, Felicia lia:

| AS | AO | AA | AT | AM | AS | AA | AR | AC | AA |

Os blocos que continham letras eram alternados pelos que não tinham.

“O que mais me intriga é que embaixo da placa da direta tem um espaço vazio, marcado com o mesmo tamanho dessas barras… falta uma então. Estaria ela dentro desta arca?”

Felicia pega a parte da cítala que possui e tenta destrancar o baú, com cuidado, para que nada se quebre. 

- Por favor, eu peço para que você não insista nisso. 

Por reflexo a ladra se vira com o bastão em punho. 

- Quem é você? Por que matou todas aquelas pessoas? 

- Calma! 

O homem se aproxima e se apresenta. 

- Eu sou Rasool al-Jishi, o zelador da Igreja de São Bartolomeu.

- Você é bem velho para cuidar disso aqui sozinho. Espera… o senhor disse Igreja de São Bartolomeu? Pra mim é uma casa de…

- Não precisa completar a frase. Infelizmente essa belíssima construção foi ignorada e comprada por jovens ricos europeus que queriam se divertir no Oriente Médio. 

- Então por que o senhor matou todos que estavam lá em baixo? 

- Não fui eu! Os autores dessa barbárie foram os terroristas de uma milícia xiita que se opõem à aliança do Bahrein com os ocidentais. 

- Por que eles fizeram isso? E como você sobreviveu? 

- Eu moro aqui há décadas, conheço locais secretos que eles nem imaginam que existem. Como esta capela. 

- Sei, mas por que esta chacina? 

- Você não desconfia? Eles estavam atrás de uma ladra com cabelos platinados. 

- Meu Deus! 

O velho homem olha para as mãos de Felicia. 

- Como você chegou até aqui? Esta capela é desconhecida pelos frequentadores. 

- Digamos que eu seja expert no assunto. 

- Isso que você segura… é o que você roubou e que estão buscando? 

“Eu não posso perder tempo… e além do mais esse tal de Rasool pode me ajudar a sair daqui. 

- É verdade, Rasool. Não toda a verdade. Esse bastão seria vendido para mim ou para guerrilheiros xiitas por peruanos. Mas ao chegarmos aqui caímos numa cilada. Muita gente morreu…

- O que pretende fazer agora? 

- Fugir! E o senhor precisa me ajudar. 

- Para isso vai ter que me dar algo em troca. Vou precisar dos seus dons de ladra. 

- Se eu cheguei até aqui, te surpreendendo por achar esta sala secreta, nada mais me parece ser impossível. 

O velho sorri e caminha até o baú. 

- Isso aqui – aponta para o objeto – é o que chamo de a Arca da Aliança. Quando esta construção era um templo da fé católica, há séculos, muitos vinham esconder informações valiosíssimas aqui dentro deste baú. Eu sempre quis saber o que ainda restou, mas o detentor da chave morreu e levou consigo o segredo do destino da chave. Será que você…?

- Mas é lógico! Não há nada que não possa ser aberto pela Gata Negra! 

Uma expressão infeliz ao dizer o nome a um estranho…

- Rasool… o que pode ter aqui dentro? 

- Esperei por toda a minha vida para saber! 

Felicia busca pela capela objetos finos de diversos tamanhos. Ao encher as mãos com pregos, agulhas, barras de metal, ela se ajoelha em frente à arca. 

- O senhor está preparado para o que vai ver? Ou pro que pode não ver? 

O velho nada responde. 

- É muita responsabilidade… pode ter algum segredo que mude a história da humanidade… como naquela ficção O Código da Vinci, conhece? Teve muita polêmica envolvendo cristãos, imprensa, o autor do livro…

O homem treme com os olhos arregalados. 

- Nesse livro tem uma história que diz que Maria Madalena casou com Jesus… é bem confuso, mas com calma se entende o que o autor quer dizer – tira uma barra de metal e coloca no canto da boca – Tem coisas de Leonardo da Vinci que dizem comprovar essa tese…

Felicia falava meio embolado, mexia nas travas… mas Rasool continuava intacto, ignorando a conversa mole da ladra.

- E está em Paris! Acredita? Pronto, velhote, eis a sua Arca da Aliança aberta. 

O homem é tomado por uma alegria e começa a correr pela capela, agradecendo a todos os deuses conhecidos pela humanidade, de todas as religiões e de todas as épocas. 

- Obrigado, Gata Negra. Você não imagina o quanto estou feliz e ansioso. 

- Tá, agora me diz o que faço para ir embora. 

- Calma… olha isso aqui. 

Rasool retira de dentro do baú um grosso livro. Coloca sobre o altar e tira o pó. Ao passar algumas folhas, chama Felicia. 

- Aqui está a cítala espartana. “Dois bastões idênticos. A gente enrola uma fita no primeiro, de pergaminho ou papiro. A mensagem é escrita no sentido do comprimento do bastão, uma letra em cada volta da fita, daí é só desenvolver e mandar pro dono do outro bastão. Que pegar apenas a fita vai ver uma sequência de letras aleatórias; quem a enrolar no outro bastão vai ler a mensagem certa”. Você precisa achar o outro bastão para concluir o trabalho. 

- E onde ele estaria? 

- De acordo com as marcas no seu bastão e na Arca… a resposta está aqui, em algum lugar da capela. 

- Certo… onde? 

- Você sabe…

Apoiando os cotovelos no altar, Felicia olha a cruz. Aquela paz interior volta. 

Ela fecha os olhos e a imagem da capela surge nos pensamentos. Cada canto vasculhado. Até os blocos das letras. 

- Me ajude aqui, Rasool. 

Felicia e o velho retiram a placa do lado esquerdo e a colocam embaixo da barra da direita. Agora ela lê:

| E | AC | AL | AA | AO | AI | AT | AG | AE | AI | A |

|    | AS | AO | AA | AT | AM | AS | AA | AR | AC | AA

- Eu continuo sem entender... não ajudou muito o que fiz, né?

- Ajudou, Gata Negra. Você não está entendendo porque é grego.

- Grego?

- Parece que meu trabalho fracassou... tudo. Falhei com Michelle, com minha mãe. Com Julia. A filha dela! Eu deixei Peter por causa desse trabalho, estraguei a única chance que tinha para reatar meu relacionamento com ele... deu tudo errado! As vidas que estas pessoas na boate perderam por minha causa... a vida de Charles!

Felicia senta e chora. As mãos na cabeça mexem no cabelo incessantemente. 

- Eu falhei, Rasool. De nada tanta tragédia adiantou. 

- Não se desespere, Gata Negra. Você é esperta. 

- Mas não sei grego! 

- Nem tem como traduzir? 

- Não…

Ela para. Levanta a cabeça lentamente. 

- Sim! 

Felicia pega o celular de Charles e começa a mexer no aparelho. 

- Vamos… tem que ter… eu vi em algum lugar uma palavra semelhante…

- O que procura? 

- Isso! – mostra o telefone para Rasool – um tradutor! Agora eu escrevo as duas frases… primeiro a de cima e logo em seguida a de baixo. 

Tensão na capela. 

- Nada, Rasool. Ele não reconhece essa frase. 

- Não fez algo de errado? 

- As palavras foram digitadas no celular na mesma ordem que vejo na parede. 

- E se tiverem uma sequência diferente? 

- Como assim? 

- Ora… metades! As letras estão na ordem, mas numa sequência diferente. 

- Espera… a de cima começa com uma letra… a de baixo com um espaço… se eu pegar uma letra de cada placa, começando com a de cima, depois uma de baixo… vai aparecer…

Os olhos da ladra não piscam. Rasool passa folha a folha do grosso livro sobre o altar. 

- Mas é lógico! Tudo indicava isso! A cruz verde, a cítala espartana, o idioma… o outro bastão está na Escola Atomista, Grécia! 

- Parabéns, Gata Negra. Em compensação, vou ler um trecho de um texto para você. 

- O que é? 

- Apenas ouça e sinta. “Abvum d’bashmaia / Netcádash shimóch / Tetê malcutách Uma / Nehuê tcevianách aicana / d’bashmáia af b’arha / Hôvlan lácma d’suncanán / Iaomána / Almín”. 

- Mesmo sem entender sei que é lindo… e forte. O que é? 

- É a oração que derivou a versão atual do Pai Nosso, escrita em aramaico, idioma originário da Alta Mesopotâmia, século VI a.c., e era a língua usual do povo. Jesus falava a eles em aramaico, Gata Negra. 

- Não sabe o quanto me sinto bem, Rasool. Me dá um minuto, preciso fazer uma ligação. 

Felicia pega o celular de Charles. O velho escreve algo num pedaço de papel. A ladra liga para RAYA. 

“Vamos Michelle, atende…”

NY, local secreto

Camaleão, Bumerangue e os integrantes do Conselho estão sentados numa mesa oval. 

- Eu sei que esse novo encontro não estava previsto, mas é que tivemos um problema operacional, relacionado com o Cinturão Conversor Cósmico. 

- Você mesmo disse que esta peça de nada adiantava… era apenas para matar uma curiosidade sua, Camaleão! Estamos perdidos! – diz um dos integrantes. 

- Tenha calma! 

- Como você o obteve? Ele foi roubado, não é? 

- Agora não interessa, George. O que vale para o Conselho é o sucesso da operação. Mas parece que intensificaram as buscas pelo objeto da SJA. 

Bumerangue se aproxima do Camaleão, segurando um telefone e cochicha algo. Camaleão olha o visor do aparelho e sorri, mas não atende, afinal, foi o combinado com Felicia. 

- Senhores, é com grande satisfação que comunico, apesar deste incidente com o Cinturão, que a última etapa do processo foi concluído. Em uma semana já estaremos produzindo nossas riquezas! 

Todos os integrantes se levantam e aplaudem o Camaleão. 

- Bumerangue! - O capataz se aproxima e é a vez do Camaleão cochichar algo – Pode soltar Julia Carpenter. 

Igreja de São Bartolomeu, Bahrein 

- Felicia… tome este papel. Vou te deixar sozinha um pouco. Só leia o que tem escrito quando se sentir sozinha e perdida. 

A ladra desliga o celular. 

- Obrigada, Rasool. Assim que eu resolver meu destino me despeço de você. 

Rasool sai da capela levando o livro. 

“Bom, me resta agora saber como vou para a Grécia. Michelle tem que me atender… eu sei que combinamos que se eu ligasse era apenas um sinal de que o trabalho foi concluído, mas ela precisa saber sobre os últimos fatos… todos eles…”

Suspiros e lágrimas. Agora Felicia estava sozinha, perdida, sem saber como agir. Pensou em pegar o bilhete deixado pelo velho homem, mas preferiu se prender às lembranças do piloto-amigo-amante. 

No celular dele, a fotos dos dois. 

“Você me salvando… como sempre… na verdade, como todos os homens que aparecem na minha vida e por quem me apaixono…”

Felicia pega a carteira de Charles. Retira papéis, vê algum dinheiro, cheques, cartões e um crachá de identificação. 

“Antes de morrer você tinha me dito que seus pertences iriam me ajudar…” 

Os ombros relaxam. 

“Ora, ora… será que você está bonitinho na foto deste documento da sua empresa de aviação?” 

Ela olha a foto, um código de barras… do outro lado um número de cadastro… e a descoberta de uma mentira: 

- Silver Sable Internacional? 

***
Nota
Por uma questão técnica (e óbvia) as letras nas placas lidas por Felicia já estão traduzidas do grego para o português.

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