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Elektra #19: Kusanagi - Minazuki 2/2

Elektra #19: Kusanagi - Minazuki 2/2

Elektra e o último teste no Paraíso Chinês: um confronto com o mais importante dos Deuses da Felicidade! Enquanto Tsukiyomi recupera o Espelho, Amaterasu ataca um templo de Susanoo! E mais, o próprio deus da Tempestade reúne uma nova Tríade Japonesa!

Palácio de Jade, K’uen-Luen 

- Vem, aquele que acode quem sente o peso de um destino e azar adversos!     

Após as palavras do Venerável Celeste de Origem Primeira houve uma parada bruta. Era como se o tempo não mais existisse, como se não houvesse nem o mais breve futuro. Estático. O “ao redor” não mais era contínuo. Porém, curiosamente, o que era “vivo” se mexia.     

Eis que surge um dos principais deuses que a população oriental venera.     

Fo.     

Um deus superior aos anteriores, pois ocupa o primeiro lugar entre as outras deidades que compunham a Tríade da Felicidade. Sua importância era destacada porque representava, ao mesmo tempo, a Hierarquia, a Fortuna e a Honra.     

- O seu último teste, Elektra.     

A ninja saca os sai.     

- Contenha-se! – a voz pacífica de Fo a interrompe.   

- Não haverá lutas. – diz o Venerável Celeste de Origem Primeira.   

- Este não é a minha última prova?   

- Nem sempre a força é o mais importante. Não adianta derrubar montanhas se não se conhece o que há no cume.     

Elektra guarda as armas brancas à cintura. Fo se aproxima pacientemente.     

- Fo é solicitado por todos aqueles que foram objetos de escárnio, mediante engano.   

- O que faço então?   

Fo separa as mãos e as coloca uma em cada lado da cabeça da assassina, na altura da orelha.     

- Permita-me que passeie pela sua mente. – diz Fo.   

- Devo resistir?   

- Cabe a você esta decisão. – responde o Venerável Celeste de Origem Primeira.     

Província de Ise, Japão

Depois de tamanhos incidentes, o local estava calmo novamente. Não mais havia peregrinação de deidades ou seguidores perturbados e em dúvidas.     

E na frente da pesada porta do mais importante templo de Amaterasu, estava Tsukiyomi.     

Não há como negar a magnitude da construção. Tamanha beleza tem uma razão: não apenas por se tratar de um local sagrado, mas por ele proteger uma insígnia imperial: o Kagami.     

Tsukiyomi empurra as portas maciças. Em vão.     

- Magia...     

Acessar o templo requer habilidades especiais.     

- E ni kaita mochi. [1]

Um reflexo prateado vaza dos antebraços cruzados e destrava a porta.     

Todas as outras entradas ao local sagrado abriram-se, com uma coincidente ventania.     

A curtos passos o deus da Lua chegou ao átrio do templo e viu numerosos galos. Isso porque eles anunciam a aurora, considerados, assim, pássaros consagrados ao sol. Na estátua de Amaterasu, no centro, estava o espelho.     

Tsukiyomi, com a mão direita envolta por uma energia, sacou a peça sagrada que a imagem da deusa do Sol portava.     

Ao segurar o Kagami, Tsukiyomi recebeu uma rajada solar vinda de um lugar que ele não conseguiu identificar.     

Em vez de desmaiar, seguiu firme, com as pernas tesas e um largo sorriso.     

Palácio de Jade, K’uen-Luen

Em pé, Elektra encara Fo. Ela mantém os olhos abertos. O deus, sereno, balbucia uma canção tão tranquila quanto.     

Finalmente tudo se torna estático, inclusive a Trindade Chinesa. Ninguém nunca ousou imaginar que os Três Puros poderiam, algum dia, sucumbir ao poder de alguma deidade.      

As escalas musicais incoerentes aos ouvidos ocidentais da ninja causavam uma espécie de reação entorpecente. Sentia formigamentos iniciados nas pontas dos dedos dos pés, que a cada nota ganhava mais do tecido humano.     

Em pensamentos, Elektra lutava, prendendo o cérebro, atendo-o às últimas lembranças, como a chegada de Fo à Mansão Celeste.     

Fo, mesmo de olhos fechados, a via com as pupilas dilatadas, testa suada. E continuava com a canção sussurrada. Ele confirmava o quanto a ninja era forte, não apenas nos músculos.     

Elektra já resistia muito mais do que qualquer guerreiro mortal, quase tanto quanto uma deidade.     

Assim ela se entregou. Suas pálpebras se fecharam pesadamente. Veio a sonolência, uma espécie de “transe consciente”, como ela se escutava dizer.     

Da escuridão dos olhos fechados ela viu a luz. A vida. A própria vida. Pensou que fosse morrer, porque segundo lhe disseram certa vez, quando uma pessoa vê a própria história como um filme, é prenúncio de que ela vai partir.     

Viu seu pai ser assassinado. Viu o fogo. Viu seu treinamento sagaz quando jovem. Viu o céu. Viu combates ao lado dos Virtuosos. Viu as trevas. Viu a debanda ao Tentáculo. Viu o amor. Viu corpos dilacerados. Viu sangue. Viu cabeças de inocentes. Viu a dor. Viu lágrimas de quem apenas buscava a paz. Viu o medo. Viu injustos e desonestos caindo. Viu a morte.     

O corpo de Elektra tombou no chão. Fo agonizava, ainda de pé. Seus olhos estavam brancos. Seu coração sentia algo inédito. Não sabia se era bom, ruim. E ele nunca saberá.     

Será tão misterioso quanto seu nascimento porteretoso, da forma em que surgiu da costela direita da sua mãe, que tinha sonhado antes que um belo elefante branco a possuía.     

O fluxo temporal voltou ao normal. Já se sentia a rotação, a translação, a gravidade. Os Três Puros observavam o corpo da ninja desfalecido na relva, e o deus da Felicidade.     

Província de Yamato

Guiado pelo anão Kappa, Susanoo finalmente encontrou o deus dos Rios, Kawa-no-Kami, que, por sua vez, estava acompanhado pelo deus das Embocaduras, Minato-no-Kami e pelo deus dos Poços, Mii-no-Kami.     

A chegada de Susanoo foi num momento especial, quando as três deidades celebravam uma cerimônia de purificação. Kawa-no-Kami convidou o deus da Tempestade a atirar às águas, um punhado de sal como oferenda.     

- Fico grato pela responsabilidade, Kawa-no-Kami.   

- Eu que me sinto honrado, Susanoo. Mas agora diga, o que deseja? Deve ser algo importante, vi que utilizou um Kappa para me encontrar.   

- Amaterasu está ensandecida. Ela reuniu divindades para recuperar os tesouros sagrados e conquistar o mundo.   

- Ouvimos murmurinhos, mas não demos devida atenção.   

- Vim exigir o seu auxílio.   

- Seria mais fácil pedi-lo.   

- Perdão, Kawa-no-Kami, mas já ouvi uma negação do Velho da Maré. Não posso perder outra ajuda.   

- O que quer que eu faça?   

- Interrompa a irrigação. Corte o fluxo das águas ribeirinhas e cesse as nascentes.   

- Isso também é loucura. Você está se perdendo, da mesma forma que sua irmã.   

- Kawa-no-Kami, sem água, os outros deuses que se aliaram a ela irão retroceder. Todos vão realizar oferendas para você. O que mais importa do que água potável?   

- Tenho apenas uma condição: a interrupção será por um curto período, até que você impeça que Amaterasu reúna as insígnias.   

- Novamente agradeço, Kawa-no-Kami.   

- Não está pensando nos mortais que habitam a Ilha?   

- Claro. Ninguém sabe o que vai acontecer com eles se minha irmã concluir o plano.   

- Por que acha que a falta d’água vai ajudar?   

- Vou combatê-la usando as mesmas armas que ela.     

Kawa-no-Kami pega uma gota de água e a transforma numa espécie de corrente. Com outra gota faz um pingente, que manteve a forma do pingo.     

- Use isso no pescoço. Quando realizar o trabalho aperte, e assim que o líquido escorrer e tocar o solo, os rios voltarão a correr.   

- Obrigado, Kawa-no-Kami. Agora vou buscar o reforço para me ajudar no combate físico.     

Redondezas de Izumo

Templo do deus da Tempestade.     

A imagem fantástica era como uma caravana. Na frente, um exército de onis [2] destruía o que atrapalhava o caminho. Atrás, Amaterasu, em resplendor, e Emma-Hoo.     

Tamanha devastação chamou a atenção dos habitantes das árvores dessa região montanhosa: os tengus. [3]

Ao perceber o ataque iminente, o Rei Tengu montou posição de defesa, para proteger o reino e, principalmente, o santuário de Susanoo.     

Amaterasu, envolta em chamas, exclamou para o massacre. Enquanto ela e o Rei do Inferno se deliciavam com o caos, onis e tengus iniciavam uma batalha feroz.     

Apesar do gigantesco tamanho dos onis, os tengus, excelentes espadachins, corriam em proteção ao templo. Montavam armadilhas para derrubar os demônios, buracos para que caíssem no profundo.     

A cena era chocante: asas dilaceradas, olhos grandes pisoteados.     

O Rei Tengu ordenou que um “folhinha” partisse em busca de Susanoo, levando a mensagem de que estavam sendo atacados pela deusa do Sol.     

Assim que partiu secretamente, o Rei sacou sua espada e foi ao combate. Renovados pelo ato heróico do líder, os seguidores intensificaram o ataque.     

Tamanha ousadia incomodou Emma-Hoo, que, insistentemente pedia que Amaterasu interviesse. Mas ela se divertia com uma sensação de esperança dos fracos e futuros derrotados.     

Só quando a cabeça de um oni caiu separada do corpo, aos pés da deidade, que ela tomou uma atitude. 

O Magatama, como se tivesse vida própria, planava meio ao conflito. Não apenas os tengus tremeram; os onis procuravam um local seguro.     

Que nunca foi encontrado.    

Com energia absurda, o calor queimava os inimigos. Corpos como labaredas se debatiam. Emma-Hoo vibrava. Nem as milenares árvores sobreviveram.     

Andando sobre a secura, quebrando o que pisasse como galho e carvão, Amaterasu parou nas portas do templo de seu irmão.     

- É isso que vai acontecer com você!     

O orbe foi colocado num espaço acima da porta, como um encaixe perfeito. Quando a deusa deu um passo para trás, a joia brilhou e em frações de segundos, o templo tornou-se pó.     

- Venha, Emma-Hoo. Estamos próximos da planície de Ise.     

Palácio de Jade, K’uen-Luen 

Com o tempo passando, a espera tornou-se satisfação. Elektra recobrava os sentidos, porém Fo seguia em hiato.     

Sem o auxilio dos Três Puros, a assassina pôs-se de pé. Nesse exato momento, Fo retornou do mundo paralelo onde esteve perdido.     

- Arma Letal – disse, causando assombro aos presentes – Milhares de governantes solicitavam a mim que os guiasse no momento de legislar, para que nenhuma norma injusta saísse de suas cabeças, nem fosse permitida no seu reino.     

Automaticamente Elektra curva o corpo, como forma de reverência.     

- Não posso reverter seu passado. O que lhe darei será maior do que qualquer presente. Devolvo-lhe sua honra perdida.     

Elektra sentiu-se leve. A última vez que teve essa sensação foi horas antes do pai morrer, enquanto os dois brincavam.     

- Preste atenção. Isso não muda seus instintos ou atos conscientes. Só você saberá o que fazer nos momentos de plena excitação. Se perder a honra novamente, seguirá vagando sem rumo. Perdida como os guerreiros sem leis e sinas.     

O tempo tornou-se acelerado, como se compensasse o período em que se manteve estático.     

No lugar onde estava Fo, ficou apenas um marfim. Ao pegá-lo, a ninja notou a semelhança dele com uma costela humana.     

- Congratulações, Arma Letal. Vem. É hora de entrar. A Rainha-Mãe quer conhecê-la.      

Caminho para Ise

Sozinho e concentrado numa casa abandonada, agora Susanoo pensava em como chamar o Deus do Fogo.     

- Fogo puro...     

Susanoo esfregou pedaços de madeira de Hinoki até que a chama surgisse.     

Dessa chama ele iniciou o complicado ritual: incendiou os quatro cantos do casebre. Em seguida, leu encantamentos que relatavam o mito do nascimento do deus, e, ao mesmo tempo, enumerava os quatro meios de conjurá-lo, a saber, com o auxilio da deusa da Água, da Areia, das Algas Fluviais e da Princesa Argila, seguindo as indicações dadas por Izanami.     

As chamas nos cantos se encontraram no centro da casa, ao tempo em que se enroscavam. Curiosamente, nada queimava.     

Subindo como um pilar, o fogo ganhava forma.     

- Ho-Musubi! Ao contrário dos povos que o temem porque os incêndios durante as estações em que o vento sopra destroem facilmente as casas de madeira, fico feliz por ter atendido a minha evocação.   

- Não permitirei que causem mais dores a Izanami e Izanagi, Susanoo. É hora de acabar com Amaterasu.     

***

Notas do autor:

Minazuki – Junho. Época de estiagem, falta de água e de irrigar as plantações de arroz.     

[1] E ni kaita mochi – Algo sem utilidade prática, como um bolinho de arroz pintado num quadro, que não dá para comer.     

[2] Tengus – Os tengus estão entre as criaturas mitológicas japonesas mais estranhas e mais antigas. Descendem de Susanoo; divindades menores, são, no entanto, respeitadas e temidas. Ainda hoje se acredita na sua existência. Os tengus moram nas árvores das regiões montanhosas, vivem em colônias chefiadas por um rei tengu. Fisicamente são meio humanos meio aves: possuem, ao mesmo tempo, asas e bicos ou narizes muito compridos. Às vezes aparecem de cor avermelhada, com mantos feitos de penas ou folhas, e uns pequenos chapéus negros. Ótimos espadachins, mostram-se psicologicamente mais travessos do que maus.    

<b>[3] Onis – </b>São demônios, muitas vezes de tamanho gigantesco, cor de rosa, vermelho, azul ou cinzento. Têm geralmente chifres e três olhos, possuem ainda como traços marcantes, três dedos nos pés e nas mãos. Podem voar, mas raramente voam. Em certos casos são apresentados como criaturas cômicas, mas é mais freqüente se mostrarem cruéis, maliciosos e lúbricos. De qualquer modo, a inteligência não parece ser uma das qualidades dos onis. 

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