Autolycus #03
Uma coisa era certa a seu respeito: adorava o mar.
Encostado na amurada, já estava há um bom tempo ali, apenas admirando o oceano banhado pela Lua. O som tranquilizador, o perfume salgado, o próprio brilho da imensidão dos mares era um convite irresistível para ele. Perdeu a conta de quantas vezes quase foi pego apenas por parar em uma praia antes de fugir com seu roubo.
Valia a pena.
Podia varar a madrugada ali, acompanhado apenas de uma garrafa de Pol Roger, se alimentando do mar - o único que conhecia seus segredos - mas tinha um trabalho a fazer. Eram quase onze da noite, o baile a bordo do AIDAnova já tinha começado e não queria perder nenhum detalhe da festa.
O navio - uma das maiores embarcações de cruzeiro do mundo - partiu do Mediterrâneo rumo às Ilhas Canárias e seu teatro de impressionantes três andares receberia algumas das pessoas mais ricas do mundo para a celebração de ano novo. Um ano novo - esperavam - livre do risco da pandemia, onde poderiam não só continuar prosperando mas também confraternizando em suntuosas exibições de riqueza. Claro, o navio estava com menos da metade de sua capacidade de passageiros: “apenas” 2700 pessoas. Mas havia muito otimismo no ar, muita esperança (igual no réveillon anterior, antes de uma onda de covid ainda mais devastadora esmagar sonhos e expectativas, tomando mais incontáveis vidas.)
Mas agora seria diferente.
Não ia esperar por um “sinal dos céus”, ou “até que as coisas melhorassem”.
Seria do seu jeito agora.
Entrou no suntuoso teatro, com a música contemporânea preenchendo o ar - para seu desgosto. Ainda preferia o barulho do mar e, se era pra ouvir algo moderno, não podia pelo menos ser caribenho? Mas não estava ali pra dançar. O k-pop ia servir.
Viu alguns rostos conhecidos, da música, cinema e colunas sociais. Jamais havia ficado tão exposto assim, diante de tanta gente. Mas era apenas mais uma pessoa circulando, as chances de ser reconhecido eram ínfimas - e contava com as próteses que usava no lado externo dos dentes para disfarçar suas feições. Mais tarde, seria localizado nas câmeras de segurança, mas seu rosto não ia bater com precisão em nenhum banco de dados conhecido. Cabelo, barba, óculos, próteses - o disfarce perfeito à vista de todos.
Claro, tinha seus inconvenientes. Mulheres maravilhosas em vestidos luxuosíssimos, que desenhavam seus corpos como uma escultura Rafael Monti. As próteses atrapalhavam pra beijar (sequer estava preocupado com a dificuldade que era simplesmente falar usando as próteses), então talvez não tivesse todos os benefícios a que estava acostumado durante suas viagens. Mas ia valer a pena.
Serviu-se de um champanhe inferior a todos os que tinha na sua adega particular e seguiu caminhando entre algumas das pessoas mais ricas do mundo. A música, cada vez mais alta à medida que se aproximava do palco, exigia mais concentração. Em seu objetivo, em seu plano e em sua libido.
Ficou tão perto do palco quanto pôde e, pontualmente às 23h23 (é melhor contar com as superstições dos outros do que com a pontualidade), o mestre de cerimônias subiu ao palco. Responsável por aquela festa - e pelo navio - Michael Thamm estava à frente de uma das companhias marítimas mais importantes do mundo. O impacto da pandemia no turismo era monstruoso. Companhias menores desapareceram, postos de trabalho foram extintos, viagens canceladas e planos de expansão adiados. Curiosamente, o grupo de Thamm encontrou margem para crescimento, comprando empresas menores, tecnologias e mão de obra altamente especializada - tudo isso contando com esse momento. Boa parte da população mundial imunizada, as variantes do vírus sendo contidas pelas vacinas e o mercado reaquecendo. Claro, o mercado que importava para ele era o dos mais ricos. Seus cruzeiros de luxo eram disputados por algumas das maiores celebridades do planeta - as mais esbanjadoras nesse quesito. A necessidade de ostentar, de colocar no Instagram uma foto tirada em um de seus navios, garantia a lucratividade e a rentabilidade.
Garantia sua fortuna.
Mas não era com ele que estava preocupado. Thamm não tinha nada que pudesse querer, ao menos não a bordo do navio.
Foi quando o estilista Stuart Hughes subiu ao palco que a diversão realmente começou.
Hughes ficou famoso por desenvolver itens luxuosíssimos, muitos deles aliando tecnologia e moda. A ideia era que as celebridades presentes se aproveitassem de sua presença para fechar negócios - trajes de luxo para eventuais casamentos ou festas, computadores, relógios, perfumes... Mas Hughes não veio sozinho: ele trouxe algumas de suas peças mais famosas para exibição.
Tinha que admitir: os anfitriões falavam muito bem. Eram convincentes e, para o público presente, já com discernimento turvo pelo champanhe, era certo de que fechariam muitos bons negócios. Quando os aplausos começaram, ativou um pequeno dispositivo no bolso, que emitiu um pulso eletromagnético por um capacitor ligado diretamente à rede elétrica do teatro. O pulso gerou uma descarga que deu um inofensivo, porém forte choque elétrico na mão com que Hughes segurava o microfone.
A corrente e a tensão foram calculados para ser apenas um susto, e foi isso que aconteceu. A voltagem fez com que Hughes ficasse com a mão presa ao microfone, que queimou em apenas dois segundos. Mas dois segundos de choque elétrico com a mão presa ao microfone parecem uma eternidade. E perder um chamariz de novos negócios tão rentável quanto Hughes era algo que Thamm não podia admitir em hipótese alguma. Ainda assustado, ele foi encaminhado até uma das enfermarias do gigantesco navio, bem próxima ao teatro.
Agora tudo dependia de não ser interrompido.
Começou a se movimentar na direção oposta à dos seguranças, mas visando chegar também na enfermaria. O plano era entrar lá logo depois deles e pedir…
- James?
“Oh, merda…”
- James, é você?
- Antonella?
- James, o que você está fazendo aqui? Você sumiu! O que aconteceu?
Precisava pensar rápido. Lembrar quais mentiras havia contado a Antonella, qual histórico de sua vida compartilhou com ela, o que não lhe faria cair em contradição. Não queria perder o foco, mas aparentemente seu plano tinha ido por água abaixo.
- Eu… Tempos difíceis, Antonella. Com a pandemia e tudo mais.
- Sim, imagino que seu trabalho como diplomata tenha sido impactado… Você ainda está em Malta?
“Ótimo! Obrigado, Antonella!”
- Não, eu fui chamado de volta. Voltei para a Irlanda e então fui para… Montenegro.
- Montenegro?
- Na verdade, ainda não fui. Fui designado para lá, devo ir em um mês. Mas pelo menos já tenho rumo, depois de… Bom, depois de tudo isso.
Antonella era uma aspirante a modelo e atriz, tentando encontrar oportunidades em um dos mercados mais competitivos do mundo. Mas isso foi antes da pandemia, quando esteve em Palermo para roubar uma pintura de Antoon Van Dyck do oratório de Rosario di San Domenico. A combinação de arte sacra e sexo era irresistível, e Antonella ajudou a complementar a equação - mas naquele momento, era tudo que não precisava.
- Seu maxilar…
- O que…?
- Parece inchado - ela disse, tocando delicadamente seu rosto. - James, você está bem? O que é isso? Tá com caxumba ou…?
- Não, eu… É uma prótese. Corretiva. Estou… realinhando os dentes…
- Você?! James, que bobagem! Seus dentes são perfeitos! Eu quase não te reconheci, com a barba e esse inchaço. Não dói ficar com isso aí na boca?
- Até que… Um pouco, pra falar a verdade.
A última coisa que imaginava é que seu “brilhante” disfarce para enganar softwares de identificação facial não fosse o suficiente para enganar alguém de quem ele fora tão próximo. Mas como ia imaginar que justo uma ex-amante estaria à bordo?
“Nota mental: da próxima vez, conferir a lista de passageiros”.
- Mas o que você está fazendo aqui? - ela perguntou, sabendo que mesmo o salário de um diplomata não o colocava no mesmo nível das pessoas à bordo.
- Acompanhando uma comitiva de empresários. Acho que dei sorte. E você?
- Eu estou trabalhando como executiva da Goldstriker. Deixei a carreira artística pra lá e comecei a ganhar muito dinheiro com finanças. Foi uma boa mudança.
“Goldstriker. A empresa de Stuart Hughes. Acho que dei sorte.”
- Bom, acho que você viu o que aconteceu com seu chefe lá no palco…
- Sim, eu estava indo à enfermaria ver se está tudo bem. Me acompanha?
Enquanto comemorava silenciosamente o fato de ter seus planos muito facilitados, reparou na aliança que Antonella usava na mão esquerda. De fato, muita coisa havia mudado. O papel de jovem executiva lhe cabia bem, restava saber se ela tomaria parte em sua cama assim que conseguisse o que havia vindo buscar.
Hughes estava em uma maca, cercado de nada menos que quatro enfermeiros. Antonella correu até ele.
- Você está bem?
- Agora, sim - ele respondeu, beijando-a carinhosamente enquanto segurava seu rosto entre as mãos. - Quem é seu amigo?
- Ah, um diplomata irlandês. Esse é James O’Connor, nós nos conhecemos alguns anos atrás.
- O’Connor, hein? Mais irlandês, impossível. Espero que não seja uma chama do passado, hahaha!
- Apenas um conhecido, senhor Hughes. É um prazer.
- O prazer é meu, rapaz. Antonella, se importa de buscar um traje mais confortável pra mim em nossa cabine? Se o senhor O’Connor não se importar em acompanhá-la…
- De forma alguma. Senhora Hughes?
- Claro… Claro - ela pareceu constrangida ao ser chamada assim por uma… “chama do passado”.
Tinham uma boa caminhada até chegar à cabine do gigantesco navio. Tempo suficiente para conversarem.
- Então… senhora Hughes?
- O mundo dá voltas, James. E… você sumiu.
- Antonella, eu nunca disse que ia ficar.
- Não, mas eu teria ido com você. Acho que… o fato de nenhum de nós ter procurado o outro… significa que tomei a decisão certa ao me casar.
- Sim. De um ponto de vista racional, sim. Estou feliz por…
- Racional?! Ora, esse é um elogio inesperado, James. Você é a pessoa mais racional que conheço!
Preferiu não responder. Um pouco de silêncio podia dizer muita coisa. Além do mais, estava voltando a ouvir o barulho do mar, longe do teatro.
Chegaram à cabine, uma das mais luxuosas do AIDAnova - o que não era pouco. Em um canto estavam alguns itens para exibição, incluindo o objeto do desejo. Seu plano era simples: uma vez na enfermaria, pretendia dar uma dose de GBH ao milionário Hughes, deixando-o sugestionável, bem debaixo do nariz dos enfermeiros. Com isso, poderia dizer a ele comandos simples e ser atendido, tendo acesso às chaves de sua cabine, onde poderia realizar seu roubo tranquilamente. Mas aquilo tinha saído melhor que a encomenda. Não ia precisar do GBH (nem das próteses que dificultavam sua fala. Colocou-as no bolso, por mais anti-higiênico que isso fosse).
- Pronto, eu peguei um agasalho…
- Antonella - ele a interrompeu. - É tarde demais?
- James? Do que…?
Ele se aproximou e a beijou como nos velhos tempos. Não tinham muito tempo, mas o lindo vestido que ela usava lhe dava fácil acesso a suas coxas.
- Venha comigo. Largue tudo e venha comigo.
- James, eu…
Não tinham tempo a perder. Foi rápido, incendiário e memorável (exceto pela primeira parte, tinha sido tudo que ambos gostavam no sexo). Ela se arrumou e, com lágrimas nos olhos, o mandou sair.
- Foi a última vez, James.
- Antonella, eu…
- Eu não vou abrir mão do que eu tenho por alguém que nunca está preso a nada. Eu quero segurança, James. Estabilidade. Eu finalmente consegui.
- Eu posso…
- Não. Não pode. Eu não queria ser modelo ou atriz, eu queria a vida que elas levam. Agora eu finalmente consegui. Eu te amo, James, mas eu não vou ter nada disso com você.
“Ouch.” Não estava falando sério quando a pediu para largar tudo, mas esse foi um duro golpe em seu ego.
- Eu… Preciso retocar minha maquiagem. Por favor. Vá embora. Eu não quero que você esteja aqui quando eu voltar.
Ela virou as costas e o deixou ali, sozinho, com o item que veio roubar.
Um terno.
O terno mais caro do mundo, com 480 cortes de diamantes, custando mais de 800 mil dólares. Tudo que precisou fazer foi colocá-lo nas costas e sair, como se estivesse carregando um terno comum. Foi para sua cabine e ativou o pequeno sensor que interferia nas câmeras. Pegou sua pequena valise e foi até um dos andares inferiores, onde pegou um bote e se dirigiu tranquilamente a Casablanca, no Marrocos. Uma viagem longa para quem estava em um barco tão pequeno, mas até um bote do AIDAvida lhe garantia segurança e conforto suficientes.
Uma coisa lhe preocupava: Antonella iria associar não só o roubo do terno com, obviamente, seu amante diplomata, mas também o roubo em San Domenico. O desaparecimento da pintura foi manchete em todos os jornais e, claro, houve o sexo. Quanto tempo iam demorar pra descobrir que não havia nenhum “James O’Connor” entre o corpo diplomático irlandês?
As três melhores sensações do mundo: um roubo bem sucedido, sexo institivo e uma perseguição internacional.
Só não sabia em qual ordem.
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