Autolycus #02
Por Raul Kuk
O vento era muito mais forte do que estava acostumado e, mesmo com seu traje especial, ele cortava sua pele como agulhas de gelo. Geralmente, por mais alto que estivesse, não se importava com o vento. Agora era diferente.
Durante a queda, em que a velocidade fazia parecer que o ar ia rasgar seus olhos, realmente se preocupava com fatores como vento e velocidade. Um cisco poderia diminuir seu campo visual, prejudicar sua precisão e significar a diferença entre fracasso e sucesso.
Tinha por regra básica cancelar todos os planos para um assalto se o menor fator inteferisse minimamente em suas chances. Podia ser um som diferente ao retesar um cabo de aço, um alerta inesperado em seu GPS, a sensação de que não havia se alimentado bem ou dormido o suficente - isso na teoria.
Na prática, sua irritação era tão grande quando algo saía de seu controle, que seguia em frente assim mesmo, só pra provar que podia. Só pra mostrar (a deus? ao mundo?) que era melhor do que qualquer probabilidade contrária. Nunca tinha sido pego: em parte, pelo seu planejamento impecável; em parte, por contar com a sorte - e não ser abandonado por ela.
Pelo menos até hoje.
A cobertura do milionário Terrance Fisherman era uma verdadeira fortaleza no topo de Milão. Executivo de sucesso em algumas das empresas mais lucrativas do mundo, se mudou para a Itália quando uma série de escândalos extra-conjugais começaram a arranhar sua reputação. Divorciado, desempregado, mas ainda incrivelmente rico, tudo que fazia era tomar as bebidas mais caras do mundo e experimentar os pratos dos chefs mais requisitados da cidade - a quem ele recompensava regiamente por cada jantar.
Fisherman sempre trabalhara dentro da legalidade de cada país em que viveu. Alemanha, Estados Unidos, Canadá, França, Bélgica e Inglaterra jamais tiveram qualquer tipo de queixa de evasão de divisas ou sonegação. Tudo levava a crer que ele realmente chegara lá da maneira mais idônea possível - e agora, ia só curtir a vida. Isso não fazia dele um idiota - quem é que vai guardar dinheiro em espécie ou joias dentro de casa? Também não possuía documentos das empresas em que trabalhara. Nada comprometedor ou que pudesse ser vendido com facilidade. Talvez um ou outro quadro, escultura, quem sabe roupas. Mas então por que o sistema de segurança mais caro do mundo?
Toda a cobertura possuía um sensor de padrão de movimento, que identificava as pessoas que podiam acessar o ambiente. Funcionava de maneira bem interessante (ainda que pouco prática): identificava a maneira como cada pessoa andava por meio de biometria, conseguindo identificar se havia algum intruso não autorizado pela simples maneira como dava cada passo. Se os passos da pessoa não estivessem registrados no banco de dados, o sistema mensurava outras informações: ele media peso, pressão e temperatura. Assim o alarme conseguiria distinguir se realmente alguém havia invadido a cobertura ou se seu proprietário apenas havia bebido além da conta.
Felizmente - para ele - não era o prédio mais alto de Milão. Isso seria extremamente problemático. Era "um dos", mas não "o mais". O mais alto de Milão (e da Itália) é o Unicredit Tower, onde subiu para ter uma vista panorâmica de toda a cidade. Estava 230 metros acima da rua, com um traje térmico especialmente preparado para sua missão: planar até o topo do Corner Duomo, onde fica a cobertura de dois andares e 200 metros quadrados de terraço.
Para isso, adaptou seu traje a uma wingsuit, um traje planador inspirado na anatomia de esquilos-voadores. Isso lhe permitiria planar pelas correntes de vento até o topo do Corner Duomo. Estava com os olhos bem protegidos por óculos especiais, mas o frio poderia alterar a temperatura de seu corpo ao ponto de acionar o alarme?
Tudo depunha contra seu plano, mas não era o suficiente para lidar com sua teimosia.
Mergulho na noite fria, o vento açoitando ainda mais seu corpo. Aparentemente, nem todo isolante térmico do mundo dava conta de um mergulho naquela velocidade em pleno inverno. Precisava circundar o Corner Duomo, o que conseguiu com facilidade após longos e gelados 54 segundos, e usar abafadores de ar quente para desacelerar. Isso faria com que "jatos" de ar quente fossem expelidos de seu traje, na direção contrária, reduzindo a velocidade o suficiente para conseguir se agarrar sem quebrar o braço. Geralmente, voos com wingsuit terminam com um paraquedas, mas não podia simplesmente cair: precisava entrar sutilmente, em um ponto da casa onde fizesse sentido alguém estar acordado àquela hora.
Havia um anexo destinado aos empregados permanentes. Não havia alarme na porta, não fazia sentido se preocupar com os empregados transitando em qualquer horário. Mas precisava se fixar à parede externa, rastejar até o intervalo entre os andares e, a partir dali, cair exatamente na frente da porta, como se tivesse passado por ela. Fixou a wingsiut à parede externa e se arrastou com seu traje que defletia a imagem das câmeras de segurança. Chegou até a porta. Saltou.
Estava no chão.
A parte difícil, realmente difícil, vinha agora.
O sistema de segurança conhecia o padrão dos passos de todos os moradores da cobertura. Por isso se deu ao trabalho de analisar as imagens hackeadas das câmeras internas, estudando-as à exaustão e imitando os movimentos de um empregado em particular: Pierluigi Gragnani. Peso similar, altura, constituição física... Seria o mais fácil, em teoria. Na prática, era como tentar enganar uma câmera de biometria da face usando maquiagem.
Cada mínimo movimento importava e, mais do que isso, o padrão. A maneira como o corpo pendia para um lado ao final de cada corredor, a forma como desacelerava o passo perto de uma porta, o preciso ângulo da coluna, ombros e pescoço.
Caminhou do aposento dos empregados em direção a uma adega do outro lado do apartamento. Viu Grangnani fazer esse trajeto centenas de vezes. Tinha uma planta do apartamento e o reproduziu em sua própria casa, com a disposição dos móveis como obstáculos. Usou softwares de digitalização de vídeos para metrificar cada componente dos passos. Tudo era estimado - se desse errado, o sistema de segurança ia mensurar seu peso, temperatura e pressão arterial. Era isso que o preocupava. Os fatores que você não consegue simplesmente mimetizar, a assinatura única de cada pessoa. Jamais saberia, mas cometeu apenas dois pequenos erros - mesmo tendo memorizado quantos passos seriam necessários, estava escuro e vacilou ao abrir duas portas. Não tinha as chaves, por isso teve mais trabalho. Mas estava calmo. A temperatura do vento e dos abafadores térmicos não alterou a sua. Conseguiu se passar por Gragnani nos mínimos detalhes - graças, principalmente, à sua sorte.
Voltou aos aposentos, subiu pela parede usando seu traje com adesivos transtérmicos e retornou para o traje que estava grudado do lado de fora do prédio. Precisou vestí-lo assim, grudado na parede, se lançar aos ares novamente, descer - aí sim - de pára-quedas na Piazza del Duomo, pegar um carro sem identificação, entrar em um caminhão, descer por um compartimento no piso e andar até o hotel em que estava hospedado.
Estava hospedado no Principe di Savoia. Deitou-se na sacada e passou a admirar o fruto do seu roubo:
Uma garrafa de Richebourg Grand Cru 1985.
O vinho branco mais caro do mundo.
A abriu com reverência, quase um ritual, e degustou cada gole daquela garrafa de 20 mil euros.
Só então se sentiu aquecido no frio de Milão.
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