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Autolycus #01

Autolycus #01

Por Raul Kuk

"Você não sabe esperar."

Talvez a frase que mais ouviu na vida. Era ansioso, afobado. O tipo de pessoa que acelerava o grupo, fosse na escola, no trabalho ou praticando esportes. Queria resolver logo, queria respostas rápidas, queria ter certeza antes do próximo movimento - e não se importava em cobrar quem quer que fosse para conseguir. 

Para se sentir seguro. 

Pra não dar um passo em falso - em uma vida cheia de passos em falso.

Ninguém fazia ideia de quanto planejamento era necessário, quanta espera, quantas horas simplesmente olhando pro teto ou pra uma tela de computador, analisando, medindo, calculando, verificando... É quando a ansiedade corroía por dentro. 

Mas ele SABIA esperar. 

Só não gostava.

Eram horas e horas baixando plantas arquivadas descuidadamente no site da prefeitura, roubando arquivos esquecidos em empresas de segurança, muitas noites procurando informações sobre cada guarda, cada pessoa envolvida no patrulhamento. Falsificando documentos, contando quantos passos um guarda dava de um ponto A até um ponto B, cada ponto cego das câmeras, cada turno.

Foi assim que conseguiu entrar no The Frick Collection.

O The Frick Collection é um dos museus mais deslumbrantes de Nova York - mas está longe de ser tão conhecido ou badalado quanto o MoMA, o Metropolitan ou o Guggenheim. Não aparece em filmes, não há muita publicidade - mas sua coleção de obras Renascentistas vale cada segundo da espera para visitá-lo. 

Ah, ele SABIA esperar. 

Soube esperar até o momento em que a segurança estava mais relaxada: em pleno dia, com um grupo de visitantes. Durante a noite, a menor alteração nas câmeras ou alarmes é encarada com máxima prioridade. Mas ali, com tanta gente dentro do museu, ninguém esperava uma tentativa de roubo. Podia ser por causa de alguma obra próxima, ou interferência de algum equipamento eletrônico de alta potência. Tudo que ele tinha a fazer era andar entre os outros turistas e... esperar.

"Você é muito impulsivo."

Impulsivo nos relacionamentos, impulsivo com a comida, impulsivo com as compras, videogames, filmes (raramente conseguia assistir algo antes de ver milhares de spoilers). Era um jeito de lidar com a ansiedade? Talvez. Odiava o blá-blá-blá pseudo-psico-alguma-coisa. Gostava de ser prático. Quando conhecia alguém, se apaixonava perdidamente e logo declarava um amor tão imortal quanto o das obras de Shakespeare. Entediado? Gastava uma fortuna em restaurantes, se alimentando do bom e do melhor. Chateado? Só entrar em alguns sites e encher o carrinho. Logo se sentia melhor. Claro, muitas vezes, por impulso, se metia em encrenca.

Lembrou-se da vez em que teve que esperar um lugar em um restaurante de Paris por quase quarenta minutos. Tinha feito reserva, mas isso não queria dizer que o lugar estaria disponível no horário combinado. Levou semanas tentando convencer uma das modelos mais famosas da França a aceitar seu convite - mas ele esperou. Agora, quarenta minutos em um restaurante que tinha feito reserva - aí já é demais. 

Seu mau humor foi tanto que fez o encontro ir por água abaixo. Na mesma noite, voltou ao restaurante e roubou uma prataria com mais de duzentos anos. Estava ansioso. Não quis esperar um plano complexo e elaborado, queria extravasar sua raiva. Quase foi pego. 

Foi melhor do que o encontro.

"Você é limitado."

Era uma porta metálica, pesada, tranca mecânica. Uma saída de emergência em um ponto cego de mais ou menos 60 centímetros em um corredor de quase 30 metros. Ela ficava livre durante o dia, mas era travada manualmente à noite - por ela, se chegava no estacionamento. Precisava danificar a trava, sem fazer barulho, em menos tempo do que levaria para um segurança perceber que alguém "sumiu" no meio do corredor. Deixou um grupo de turistas que acompanhava se afastar. Continuou andando lentamente, olhando em volta. Ia na direção da porta, sem desviar o rumo. Colocou o braço na barra de segurança e a puxou pra cima - não em um solavanco, mas colocando toda sua força devagar, pra que não houvesse um barulho de impacto. 

Nada.

Quatro segundos. Cinco. Seis. Mais força.

Sete. Oito. 

Tempo demais. Quanto leva pra uma pessoa dar três passos em linha reta? Certamente não oito segundos.

Nove. CLANC!

Algo pareceu soltar no mecanismo de trava. Soultou-a delicadamente, para que não fizesse barulho, e voltou a andar, procurando manter a mesma velocidade. Com sorte, ninguém perceberia que parou no meio do caminho. O braço doía, talvez tivesse distendido um músculo. 

- Senhor? O senhor está bem? -  um segurança veio interpelá-lo. - Tudo bem com seu braço?

Só então percebeu que estava segurando o braço, um reflexo por causa da dor. 

- Sim, sim, eu... Eu acho que exagerei na academia...

- Ok, tenha cuidado, sim? 

Os cabelos prateados lhe davam uma aparência frágil - algo que, definitivamente, não era. Mas atraía a simpatia das pessoas. O guarda, genuinamente preocupado, desviou o rosto e continuou sua vigília, olhando para paredes e espaços vazios enquanto esperava um chamado no rádio tirá-lo de sua rotina. 

Esse chamado não chegaria hoje.

"Eu não vou te indicar porque, se você fizer algo errado, eu que vou ficar queimado."

Ouviu isso vezes demais, de pessoas de menos. 

É claro que emprego, trabalho, são relações complicadas. Mas nunca pôde contar com ajuda. Já tinha assaltado os dez maiores bancos do país, já tinha invadido lugares como o Louvre e a Casa da Moeda, possuía uma coleção de joias espalhada pelo mundo, em diferentes bancos, sob diferentes identidades. 

Tudo sozinho. 

Enquanto esperava debaixo de um carro no estacionamento, sem ouvir qualquer som, música ou outra coisa que pudesse distraí-lo. Apenas o som distante dos carros indo embora. Um após o outro. 

Sabia quais carros ficariam, quanto tempo tinha. O segredo era conseguir se prender ao piso de um deles do lado de fora e ser levado para dentro, mesmo correndo o risco de ter o pulmão esmagado em um quebra-molas. Por isso escolheu um pequeno caminhão baú do time de segurança, que só ia para o The Frick Collection uma vez por mês, levando uniformes e equipamentos novos e recolhendo o que estava danificado na manhã seguinte. Era um dos trabalhos da equipe de segurança. Eles não podiam sair do museu com os uniformes, então se trocavam lá e deixavam as roupas em armários. 

Até o vestiário deles tinha câmeras. 

O estacionamento também. 

Estava sozinho de novo. 

Mas era inverno e, como sempre nessa época do ano, a névoa subia pelos bueiros e cobria o chão com uma fina manta branca. As cápsulas na lateral do seu cinto emitiam mais fumaça, o suficiente para ajudá-lo a se misturar. A questão é: será o bastante?

Podia invadir o sistema de câmeras do museu e mapeá-lo pelo dispositivo no seu antebraço. Tudo que tinha a fazer era se arrastar pelo chão quando percebesse que a neblina estava suficientemente densa, até chegar à primeira porta. 

Se ao menos tivesse alguém monitorando as câmeras para ele, poderia receber informação do momento mais adequado para sair. 

Mas nunca contou com ninguém. 

Nunca "queimou" ninguém. E jamais olhou pra trás.

Movia-se pelo chão, entre um carro e outro, encoberto pela neblina. De um carro a outro, em movimentos que às vezes levavam longos vinte minutos. Não tinha a noite toda, então jamais podia voltar atrás. Sempre em frente. A qualquer preço. Sempre sozinho. 

Com o peito paralelo ao chão sujo e gelado, chegou até a porta. Precisava abrí-la (de fora para dentro não havia trava), mas o mínimo possível, só o suficiente para se esgueirar por ela - e torcer para que ninguém percebesse o movimento. 

Precisava executar o movimento em menos de sete segundos - três seriam muito pouco tempo para fazer sem afobação, quatro seria o ideal, os outros três segundos... Bom, era supersticioso. Sete segundos. Uma pessoa ia ignorar o movimento até quatro segundos, mas sete? Só por sorte. E ele precisava dessa sorte a seu favor. Cada chance contava. Abriu a porta, passou e finalmente pôde ficar de pé. Mais de uma hora e dez minutos para sair debaixo do caminhão e chegar às escadas. Sozinho. Sem afobação. 

Seu traje não era pra impressionar. Ele era feito de um material defletor que enganava câmeras infravermelhas, distorcendo as células que recebiam as ondas de calor. Não podia ficar parado sob hipótese alguma, mas precisava ir devagar. Sem correr. Subindo os degraus. Primeiro andar.

Segundo andar.

Terceiro.

Quarto. 

Finalmente chegou à porta. Se o plano tivesse dado certo, se realmente tivesse conseguido danificar a trava e nenhuma equipe de manutenção tivesse se importado em fazer uma manutenção emergencial, ia passar por ela e estaria dentro do museu. Era uma porta de emergência pra quem estava do lado de dentro, então era só puxar e... voilá!

Estava restrito ao pequeno espaço de 60 centímetros que era o ponto cego entre as câmeras do corredor. Os guardas não se preocupavam em andar sem fazer barulho, então provavelmente saberia se um deles se aproximasse. 

Provavelmente. 

Contudo, o efeito defletor do seu traje não permitia que parasse no caminho. Quando voltasse a ficar no alcance das câmeras, qualquer pausa poderia ser fatal. Sabia exatamente qual quadro pegar: o "A Senhora e a Criada", do holandês Johannes Vermeer. Era a menor pintura suficientemente próxima: um quadro de cerca de 90cm por 80cm. Ficava atrás de uma caixa de acrílico sensível ao toque, mas suficientemente afastada da obra para permitir que colocasse a mão. Precisava colocar a mão dentro da caixa e retirar a pintura. Não fazia ideia de quanto tempo o processo levaria, mas sabia que ficar parado lhe seria fatal. Os guardas, claro, não ficavam rodando por um museu fechado. Tinham seus turnos, horários para comer, mas passavam a maior parte do tempo monitorando tudo pelas câmeras.

Usou ácido nas luvas para dissolver o acrílico. Precisava apenas de uma abertura na parte de baixo. Os monitores de movimento ficam nos quatro parafusos, um em cada canto, então simplesmente dissolver a caixa não era, necessariamente, um movimento que podia ser captado. 

Enfiou as mãos por baixo e retirou o quadro, como quem tira um quadro da parede - mas com as pontas dos dedos, e segurando numa extremidade. Se parece fácil, tente imaginar como seria erguer aquela mesa de centro da sala, que você ergueu tantas vezes pra fazer faxina, usando apenas uma das mãos e segurando na ponta de um dos pés. 

Achavam que ele podia queimar alguém no trabalho.

Ele nunca foi pego. 

Tirou o quadro. 

De um bolso no peito, tirou um pequeno lençol do mesmo tecido de seu traje e o jogou pelo quadro. Voltou pelo mesmo caminho, à mesma velocidade. Sem ansiedade. Sem afobação. Desceu as escadas, mas não parou no estacionamento: foi até o subsolo, a casa das máquinas. Havia sistemas de controle de temperatura que usavam caldeiras e ar condicionado, com saídas para o esgoto. Não tinha alarmes nas máquinas. Desmontou uma saída de água do ar condicionado e se esgueirou por ali, puxando o quadro - uma pintura do século XVII de valor inestimável. Sem danificá-la. Por quase oito metros. Chegou a uma saída para o esgoto. Conhecia a rede quase de cor, sabia quantos metros andar em cada direção. Levava o quadro com as duas mãos acima da cabeça. Chegou na sua saída, um beco escuro onde nem os ratos se aventuravam. Não havia portas ou janelas ali, nem iluminação. Talvez um ou outro mendigo dormindo.

Chegou em casa, abriu um Armand Brignac e ficou esperando o sol nascer, com o Vermeer já na parede. Ouviu muitas coisas terríveis durante a vida. Muitas palavras crueis. 

Ali, com a taça de vinho nas mãos, pensou na mais cruel de todas. 

O silêncio.  

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