Tomb Raider #01 - O Oxê de Xangô
Nigéria
Pouquíssima movimentação havia no vilarejo distante quilômetros do Reino de Oyó; todos os moradores estavam fora. O motivo era muito especial: três dias de preparação para a festa anual em homenagem a Xangô, o deus local, dono da Justiça e do Fogo.
A festa, antes, era realizada no Reino de Oyó, mas por causa de uma previsão de Arabá, soprada por Ifá, foi determinada a mudança. O futuro guardava um ano difícil e um ataque ao Reino.
Como consequência, Arabá e seis guardiões, acompanhados pela menina-princesa Adún, levaram o Oxê de Xangô para o vilarejo, a fim de concretizar o que foi dito por Ifá.
A presença do Machado Sagrado de Dois Gumes, feito de araotá – pedra de vulcão – servia para manter próspero o local. O objeto místico era guardado não só pelo velho Arabá, como também por um dos guardiões, Ogumbyí, que também ajudava a preparar o banquete e as oferendas ao orixá.
A previsão do ataque, desacreditada pelos guardiões mais jovens por admirarem a paz que reinava por anos em Oyó, está prestes a se realizar...
Highland, Escócia
Dois dias depois.
Era um belo começo de tarde. Curiosamente não havia turistas, nativos ou pesquisadores.
Ninguém admirando o grande lago que oferece uma curiosa lenda. Uma lenda de um ser místico – ou pré-histórico – que tantos juravam ter visto.
Na verdade, havia uma tenda de lona, que protegia um arsenal de aparato tecnológico: sondas, radares, rádios e monitores. E um jipe.
Operando todo o material, apenas um homem trajando uma calça jeans desbotada, uma camiseta amarrotada e amarelada. Braços fortes, sujos de terra e vegetação. Os óculos teimavam em ficar presos à face.
E o desespero chegou quando um alarme discreto soou, e uma luz piscou, chamando a atenção de Phillips.
Alternando os comandos nos botões, disparando palavras pelo comunicador. Nada adiantou.
Veio o susto, com uma explosão quase na margem do Ness, distante poucos metros daquela espécie de base.
Em disparada, Phillips correu e entrou no lago; a água tocava-lhe os joelhos. Assim ele viu um equipamento boiando, depois de ter emergido com tanta violência.
Daquela espécie de mini-submarino, que comportava malmente uma pessoa de 1,80m, deitada, com apenas da cintura para cima protegida pelo veículo aquático, sai uma figura feminina, com belas medidas, vestida numa roupa de mergulho semi-seca, preta com detalhes verde.
Insatisfação.
- Ainda não foi dessa vez, né, Lara? – grita Phillips, sem-graça – Parece que nosso amigo, se existir mesmo, faz de tudo para não ser encontrado.
- Suas piadas não vão me fazer sentir melhor. O que você fez com o mini-submarino?
- Eu alterei conforme suas necessidades e ordens.
- Não funcionou e eu quase morri asfixiada.
- Qual o problema dessa vez?
- Dessa vez? Se não me engano, é a sexta vez que você diz ter consertado isso. Você realmente sabe trabalhar com mecânica?
- Qual é, Lara!
- Eu não enxergava absolutamente nada! E olha que não me refiro à escuridão do Ness! E para piorar, não consegui descer nem dez metros, Phillips!
- Eu não compreendo!
- Eu que não compreendo como você é teimoso! Já te falei que um homem não pode ter cérebro e músculos ao mesmo tempo! Precisa escolher!
Phillips estira a mão para puxar Lara, ela nega e sai sozinha. Ele aproveita e recolhe o submarino.
- Quer que eu faça novas modificações?
- Quanto tempo isso vai me custar?
- O suficiente para que você relaxe um pouco, aprecie a vista...
- Não diga para eu respirar o ar puro nem curtir a brisa. A não ser que queira usar dentadura.
Phillips sorri enquanto corre para pegar os objetos de manutenção. No mesmo instante, Lara abaixa o zíper da roupa e a abaixa até a cintura. As nadadeiras já foram jogadas longe. Os óculos de lentes avermelhadas repousam como tiara sobre a cabeça.
Phillips não disfarça e olha no exato momento em que Lara retira toda a roupa úmida e, de biquíni, se senta numa cadeira e se serve de água com gás.
- Por que decidiu trocar artefatos mágicos por monstros inexistentes? – grita Phillips.
- Por que você não tira a camisa?
- Você sabe o que dizem sobre pessoas que respondem a uma pergunta com outra pergunta?
Lara sorri e cobre os olhos com os ósculos escuros.
- Phillips, existe alguma temporada especial para que os seguidores desse ser que habita o lago apareçam?
- Não... Também estou estranhado essa solidão. Já que estamos sozinhos... – retira a camisa – Por que não nos divertimos um pouco?
- Qual tal brincarmos de tiro ao alvo? – em um salto, Lara alcança as duas pistolas e mira Phillips.
- Opa! Eu estava só brincando! – e veste a camisa.
- Pode ficar sem a blusa. Ao menos é algo que mexe com minha imaginação, afinal, o monstro não deu sinal de vida mesmo...
Poucos minutos mais se passaram. Lara ora olhava Phillips, ora mirava o lago, buscando qualquer indício de vida misteriosa.
- Sério, Lara. Cansou de desbravar tumbas?
- Quero alcançar algo considerado impossível.
- Vai viver de lendas?
- De qualquer coisa que me tire de casa. Odeio o tédio – e se levanta. Pega algumas latas de condimentos, coloca-as em locais distintos, distantes umas das outras. Carrega a pistola e volta para a cadeira – Não faça movimentos bruscos para não ser atingido!
Assim começa mais uma diversão: com trajes de banho, sumários, ela salta o que surge de obstáculos, como pedras, e, no ar, dispara contra os alvos.
No meio de cada queda, um rolamento, e novos disparos. Os óculos escorregam, e entre um tiro e outro, ela os ajeita no rosto.
Como uma criança, corre, pula, agacha. Atira. Todos os objetos alojados, escondidos ou não, recebem um único tiro e caem sobre o solo.
- Não prefere pesca submarina? – berra Phillips, com as duas mãos cobrindo os ouvidos.
- Preciso de um lugar novo para me distrair. Como anda o conserto?
- Complicado aqui. O visor não responde, por isso você viu tudo escuro. Deve ter sido algum cabo desconectado com a pressão.
- Como houve pressão sem nem desci muito?
- Coisas que só a engenharia explica, Lara.
Novamente o alarme é disparado e as luzes acendem. Lara corre até a tenda e para na frente do equipamento.
- Que está acontecendo, Phillips?
O parceiro rapidamente chega à base e digita códigos pelo teclado do laptop.
- É algo com o submarino? É algo detectado no fundo do lago?
- Não! Eu não compreendo! O radar não captou nada num raio de 100 quilômetros.
Lara revira os objetos e encontra o PDA, conectado ao computador.
- Já sei o motivo do estardalhaço.
- Vou voltar ao trabalho. Se precisar de qualquer coisa... eu disse “qualquer coisa”, você me convoca.
Lara nem dá muita atenção e segue a lentos passos ao redor da tenda, até onde suporta o cabo, e tenta descobrir o que houve.
- Phillips, preciso de você aqui! – ela o chama antes mesmo de ele chegar ao veículo.
- Passe para cá – e pega o PDA – Hum...
Lara volta à cadeira e veste a roupa de mergulho. Sua experiência e sua sensitividade a alertam de que a notícia não é boa, e que ela vai partir em breve...
- Problemas na Nigéria, Lara.
Uma expressão de surpresa.
- Nigéria?
- É como uma mensagem na secretária eletrônica. Não estamos recebendo em tempo real.
- O que diz?
- Estou tentando traduzir. Nosso idioma, mas tem muitas gírias, falado de forma embolada...
Tempo de pensar. Nigéria. Nada lhe vem à mente. A África é um continente gigantesco, ela já percorreu muitos lugares, fez muitas amizades, mas não se recorda de nada na Nigéria.
Isso a preocupa.
Em sua mente ela vê os locais por onde passou, as pessoas com quem teve algum contato – seja lá qual tenha sido ele.
- E então, Phillips?
- Identifiquei o remetente: Ogumbyí, conhece?
O corpo de Lara é tomado por um arrepio.
- O que ele falou?
- Estou tentando converter o áudio... torná-lo mais lento, mais limpo, para que eu possa compreender o que ele diz. Me dá uns segundos, deixa eu passar os dados pro laptop.
Tempo agora para recarregar as pistolas e arrumar o necessário na mochila forrada – internamente – com rede de pesca.
- Com os plug ins aqui instalados não consigo muita coisa, Lara. Pelo tom de voz, pressa, e impostação, não é coisa boa.
- Aumente o volume, abaixe o grave e diminua o pitch. Deve funcionar.
Os ruídos sonoros dão lugar a um recado desesperado. O corpo de Lara sofre novos arrepios, a boca de Phillips se abre inconscientemente.
- Normalize e dê o play.
Os chiados somem. A voz de Ogumbyí é escutada perfeitamente.
- Lara? Você precisa me ajudar. Acabamos de ser atacados. Apenas eu sobrevivi. Venha até Oyó o mais rápido possível. Uma tragédia está prestes a acontecer. Levaram o Oxê Sagrado. Por favor!
E seguem os ruídos de interferência.
Lara, inconformada, respira profundamente com a cabeça baixa. Phillips permanece estático.
Silenciosamente, Lara recolhe seus pertences – apenas os pessoais – e, pelo laptop, dá um comando de emergência.
- Um helicóptero virá te buscar, Phillips.
- Aonde você vai?
- Ajudar um velho amigo. Quer vir comigo?
- Como você vai?
- Phillips, o que você me disse sobre pessoas que respondem uma pergunta com outra pergunta?
- Me pegou – e sorri – Eu vou ficar aqui, esperar meu resgate e tentar consertar essa joça.
- Tudo bem. A gente se encontra depois. Continue conectado ao meu PDA porque, provavelmente, precisarei de favores.
- Como quiser. Ainda quero saber como você vai até a Nigéria!
- Montada no monstro do lago Ness!
Continente africano
Sobrevoando o Saara. Uma bela imagem quando se é vista de cima, rapidamente, e com digamos, um pouco de comodidade.
Pouca vida e muita esperança abaixo.
O caça rasga os céus deixando um rastro que pode ser confundido com algum meteoro que paira sobre os limites da Terra.
Atrás do piloto, Lara tenta imaginar o que pode ter acontecido no Reino de Oyó, um local sagrado praticamente perdido na Nigéria.
O que causou tantos resquícios e deu fim a outros sopros de vida.
- Lady Croft, cruzamos o espaço aéreo nigeriano. Seguindo suas coordenadas, em minutos estaremos sobre o local.
- Ótimo, Richard.
Uma última conferida no próprio equipamento: pistolas, escopeta, sinalizadores/iluminadores, kits médicos, bússola. Tudo bem organizado na mochila.
- Chegamos! Em cinco segundos vou te ejetar. Boa aterrissagem!
- Obrigada, Richard! Diga aos meninos que mandei lembranças! Passem lá em casa dia desses pra tomarmos um chaaaaaaaaaaaaaaaá!!!!!!!!
A frase foi concluída no ar, aos gritos e risos. O piloto talvez nem tenha escutado o convite.
Nigéria
O pára-quedas amortece a velocidade, a distância e a queda, o que é bem vindo quando se vai pousar entre árvores, num local ermo. Ao se livrar do que a ajudou a chegar sã e salva em terras sagradas, aperta os cadarços das botas e liga o PDA.
Como um GPS, ela recebia as coordenadas até a pequenina vila na região do Reino de Oyó.
Ela não vê marcas de veículos no chão, supõe então que vieram em aeronaves. Não vê resquícios de lutas, imagina que foram pegos de surpresa.
Mas vê sangue.
O ar é pesado durante a caminhada até a construção de onde vem o sinal captado pelo PDA.
Ela corre ao ver Ogumbyí deitado, ferido, com um aparelho telefônico via satélite sobre o peito. Retira um kit médico da mochila e trata dos ferimentos no abdome, braços e pernas.
- Lara, minha amiga – murmura.
- Não fale, Ogumbyí, você está muito fraco.
- Eles... vieram, mataram todos...
- Eles quem?
- Nunca os... vi...
- Nenhuma marca, símbolo, semblante, hinos, tatuagens... nada?
- Não...
- O que eles queriam?
- O... Oxê de Xangô.
- O Machado Sagrado? Mas ele existe?
Ogumbyí se contorce, como uma resposta, um sinal de melhora.
- Sim... Lara.
- Como foi?
- Durante o ataque, o Abará foi assassinado por não dizer como o Oxê funcionava. Nem sob torturas e chantagens ele cedeu. O homem que comandava a ação atirou em mim e eu tombei, mas pude ouvir um guardião novato, com medo de morrer, revelar o nosso maior segredo, de conhecimento de quem protege o Machado.
- Quais foram as palavras, meu amigo?
- Que o Oxê só funciona nas mãos de uma virgem herdeira de Oyó.
- Eles encontraram uma mulher com essas condições?
- Sim, a princesa Adún estava presente e foi forçada a usar o Oxê.
- Ela revelou o que eles queriam?
- Ela disse “vá pro meio do mar onde o galo não canta”, e foi levada com eles.
- Eu realmente não posso compreender. Preciso que me ajude a interpretar.
- É um local novo, Lara. Um local para onde os escravos que não tinham serventias, ou rebeldes e revoltosos, eram levados.
- América?
- Não. Do outro lado.
- Então só pode ser... Oceania. Mas lá não era uma prisão do império britânico?
- Não se engane com o que lê, Lara. Muitas civilizações, de diversas épocas, já usavam a Grande Ilha como local de penitência ou de castigo para quem não honrava o próprio povo.
- Vai ficar bem aqui?
- Eu vou com você.
- Não! Você está muito ferido, precisa de descanso.
- Eu vou, Lara. É minha obrigação. Antes de eu nascer, há 40 anos, ganhei esse nome quando minha mãe sofreu um acidente. Arabá recebeu um recado de Ifá que essa criança – eu – seria um grande guerreiro, filho de Ogum e leal como ele. Ogumbyí quer dizer “Ogum é forte”. Preciso vingar a morte de Arabá, trazer viva a menina Adún e resgatar o Oxê.
- Bom, já vi que não vou te impedir... então, vamos! Sempre há lugar para boa companhia!
Lara pega o PDA e se conecta com Phillips.
- Preciso de resgate.
- Nossa, você geralmente é rápida assim?
- Só em caso de extrema necessidade.
- Qual o destino?
- Providencie um transporte para o Novo Mundo, e sonde sobre possíveis comentários sobre um artefato africano. Especificamente, do candomblé.
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