Hera Venenosa #04 - Pétalas
Seattle, anos atrás
A grande casa branca continuava vazia. Vazia no sentido mais metafórico possível.
Todas as noites, o senhor Isley levava garotas de programa e fazia grandes bacanais por quase todos os cômodos da moradia.
Menos no quarto de Pamela, que vivia trancado. Na maioria das vezes, com ela dentro.
Lá, ela não se concentrava em nada. Estudos; ouvir os pensamentos. Tudo era suprido pelos gemidos e gritos das orgias.
Era uma vida vazia. Sem amigos. Sem a mãe. Sem perspectivas para o futuro.
E isolada no seu mundo, Pamela lia sobre a real vida. Buscava entender porquê a dela era diferente. O motivo de ela não ser como as outras garotas da sua idade.
Pesquisando para compreender. Leu psicologia. Leu biologia. Leu até antropologia. Mas nunca obteve sucesso em suas respostas.
Inclusive, lendo sobre o corpo humano, envegonhava-se. Não tinha referência alguma sobre sexualidade; ela cansou de ver a mãe e outras mulheres sendo simples objetos nas mãos do pai.
Tanto que ela quase surtou ao menstruar pela primeira vez. Sem as palavras de conforto da mãe, trancou-se no banheiro ao ver a enxurrada de sangue que escorria pelas coxas, até o chão.
- Se você começar a fuder, sua puta, vai ficar grávida!
Foras essas as palavras dadas pelo senhor Isley, quando ele arrombou a porta pela demora da filha lá, e viu que ela estava se tornando uma mulher.
Até mesmo nas noites mais quentes, com as transformações da adolescência, ela se reprimia.
O desejo a apertava à virilha.
Ela chorava.
Seu corpo havia mudado. A vergonha, não.
Por isso ela decidiu continuar se escondendo. Andar cabisbaixo. Com o corpo coberto por roupas escuras, pesadas. Não havia vaidade. Só a opressão.
No dia seguinte, mais faxina.
Enquanto o pai dormia, ela arrumava a casa. Catava as garrafas de bebidas com alto teor alcoólico, limpava o piso suado, recolhia preservativos e cobria, com um lençol cheiroso, o pai, nu, no sofá.
Havia espaço para o afeto...
Ao fim, restou a ela pegar a velha bicicleta de tinta descascada e pedalar pelos arredores.
Na rua, as pessoas a olhavam com pena. Ou desdém.
Ao parar numa pequena praça, encostou-se numa árvore e pôs-se a ler.
Não ouvia nada. Estava concentrada. Mesmo com os grandes óculos – quebrados – escorregando pelo nariz.
Sua paz foi interrompida com uma gritaria. Por reflexo, se levantou e observou jovens da mesma idade que ela, comemorando.
Montou na bicicleta, na direção da alegria, e descobriu o que tanto brindavam.
Foram selecionados para ingressar na universidade.
- Será que eu...?
Abriu a porta da casa como um furacão e foi para a cozinha, estranhando o fato de seu pai não mais estar no sofá.
No outro cômodo, o pai, ainda despido, bebia água pela garrafa mesmo.
- Papai, chegou alguma carta para mim?
- Por quê chegaria?
- A universidade mandou a resposta...?
- Eu li. Você não foi aceita. Por que eles iriam aceitar uma merda como você?
- Onde está a carta?
- Eu já falei, desgraça. Você não foi aprovada.
- Eu quero ler!
- Tá me chamando de mentiroso?
Respirações ofegantes.
- Eu... só... queria ler, papai.
- Sua burra, estúpida! Vá procurar um emprego numa lanchonete qualquer. Você é um nada!
Novamente ela correu. Pra fora da casa.
Se encostou numa árvore, a mesma que a mãe insistiu em manter quando construíram o lar.
Sentada, chorou.
Soluçou.
O vento bateu mais forte, mais rápido, sacolejando os cabelos e quase secando as lágrimas.
Diversas folhas se desprenderam das árvores e caíram sobre ela, como se dançassem ao seu redor.
Uma cena mágica, linda, que não a impediu de derramar o líquido salgado.
Algumas folhas, bailando, voaram na direção da lata de lixo.
Pamela levantou os olhos para assistir ao espetáculo.
Sua curiosidade a fez seguir as folhas, e, no saco de lixo, viu o envelope timbrado da universidade.
Desesperançosa, ela o pegou. As folhas caíram ao chão com o brusco cessar do vento.
Pela primeira vez desde que a senhora Isley morreu, seus olhos brilharam e um sorriso surgiu.
A porta da cozinha foi aberta numa força descomunal, tanto que seu pai deixou cair a grande faca com a qual tratava um peixe.
- Filha da puta! Quer me matar? Olha o que fez! Pegue e lave essa porra!
- Você mentiu pra mim.
- O que?
- Achei a carta da universidade no lixo! Eu fui aprovada!
- Quando eu digo que você não foi, é porque você não foi!
- Eu vou para a universidade, papai.
- Não vai. Eu não vou pagar!
- Qual seu problema?
Hormônios...
- Pegue esta merda de faca, sua vagabunda!
Pamela, confusa por estar, ao mesmo tempo, enfrentando o pai e o obedecendo, segura o cabo do afiado instrumento.
- Por que não posso ir?
- Eu não vou pagar, já disse!
- Mamãe deixou dinheiro para isso!
- Mentirosa!
Um soco.
Um olho roxo.
- Você não vai!
A mão de Pamela segura a faca com a mesma força desconhecida de antes. Seu pescoço fica teso. O suor escorre pela nuca. A boca treme. O pai lhe dá as costas.
- Limpe a bagunça porque vou receber visitas hoje.
Ela não respira. Levanta o braço. O pai se afasta.
Ela se lembra de tudo o que leu sobre controle de corpo e mente.
Sobre raiva.
Sobre perdão.
E chora.
A faca cai ao seu lado, na mesa, com gotas que se esvaem dos olhos vermelhos.
No instante seguinte ela se ajoelha, e começa a passar um pano para limpar o chão.
Exausta, deita na cama.
- Por um momento meu fraquejo seria minha vontade...
Tira a carta sob a blusa e a lê, comemorando.
- Por sorte não estraguei a minha vida!
Agora restava a ela buscar meios para ingressar na universidade.
Achar o local onde o pai esconde o dinheiro e sumir do mapa.
Na noite, o processo se repetiu.
Duas mulheres chegaram, bêbadas já.
Falavam alto. Riam alto.
Em pouco tempo se ouvia as ofensas, os estalos de tapas, as provocações.
Os orgasmos.
Só não se ouvia a porta da casa abrindo ou fechando.
Isso deixou Pamela preocupada. Isso significava que eles não iriam... dormir?!
Arriscar. Era o que lhe restava.
Saiu do cômodo na ponta dos pés.
Pela fresta da porta, viu a luz acesa no quarto do pai. Correu até a sala.
“Só pode ser nessa noite...”, pensava, excitada.
Revirou os móveis, tirou livros, levantou tapetes. Não achava nada que lhe indicasse o destino do dinheiro.
A porta do quarto se abriu.
Pamela se jogou pra trás do sofá.
Três vozes embriagadas se aproximavam.
Corpos colados.
E o sexo aconteceu ali mesmo, no sofá.
As mulheres disputavam o pênis do pai, rindo. Ele só batia nas costas delas e forçava a cabeça para o sexo oral.
Uma não resistiu e sentou sobre o membro, arranhando o tórax do senhor Isley que a xingava e empurrava a cabeça da outra convidada pro meio das pernas deles.
Escondida, Pamela viu a cena.
Chocada. Curiosa.
Engatinhando, correu para o quarto do pai.
“Arriscar...”, pensava.
Lá, o cheiro de sexo. As manchas de sexo. As marcas de sexo.
Lembrou dos três na sala.
E das bocas pelo corpo.
Do ato.
Do prazer.
Pamela ficou tonta. Seus olhos reviravam. Sentiu seu corpo arrepiar e algo lhe cortar a coluna.
Balançou a cabeça, arregalou os olhos, como se saísse de um transe.
E voltou a buscar o que realmente lhe interessava.
Armários. Gavetas. Colchão. Paredes. Fundo falso. Sacola. Dinheiro. Notas altas. Muitas.
Quarto. Seu local seguro.
Abriu o baú frente à cama e de lá retirou uma mala.
Passou a jogar todas as roupas – que não eram tantas – além de um ou dois livros e da foto de Pamela e da mãe, abraçadas, tirada no ano em que ela morreu.
O silêncio voltou a reinar.
A porta da casa não fora batida, fazendo Pamela deduzir que os três se esgotaram.
Da janela, ela pegou o cacto presenteado que ainda não havia florescido.
- Me perdoa, mamãe, mas estou fazendo o certo. Fazendo o que você devia ter feito!
Tirou toda a roupa, menos o sutiã. Vestiu as novas peças, mas, ao dobrar a calcinha que usava, viu algo que a deixou arrasada.
Relutou.
Chorou.
Pensou em desistir de tudo e viver à sombra do pai.
Por um instante ela pensou assim.
Até voltar para a janela e, durante o salto da fuga, jogar sobre a cama, sua calcinha.
Molhada.
Seattle, anos atrás
A grande casa branca continuava vazia. Vazia no sentido mais metafórico possível.
Todas as noites, o senhor Isley levava garotas de programa e fazia grandes bacanais por quase todos os cômodos da moradia.
Menos no quarto de Pamela, que vivia trancado. Na maioria das vezes, com ela dentro.
Lá, ela não se concentrava em nada. Estudos; ouvir os pensamentos. Tudo era suprido pelos gemidos e gritos das orgias.
Era uma vida vazia. Sem amigos. Sem a mãe. Sem perspectivas para o futuro.
E isolada no seu mundo, Pamela lia sobre a real vida. Buscava entender porquê a dela era diferente. O motivo de ela não ser como as outras garotas da sua idade.
Pesquisando para compreender. Leu psicologia. Leu biologia. Leu até antropologia. Mas nunca obteve sucesso em suas respostas.
Inclusive, lendo sobre o corpo humano, envegonhava-se. Não tinha referência alguma sobre sexualidade; ela cansou de ver a mãe e outras mulheres sendo simples objetos nas mãos do pai.
Tanto que ela quase surtou ao menstruar pela primeira vez. Sem as palavras de conforto da mãe, trancou-se no banheiro ao ver a enxurrada de sangue que escorria pelas coxas, até o chão.
- Se você começar a fuder, sua puta, vai ficar grávida!
Foras essas as palavras dadas pelo senhor Isley, quando ele arrombou a porta pela demora da filha lá, e viu que ela estava se tornando uma mulher.
Até mesmo nas noites mais quentes, com as transformações da adolescência, ela se reprimia.
O desejo a apertava à virilha.
Ela chorava.
Seu corpo havia mudado. A vergonha, não.
Por isso ela decidiu continuar se escondendo. Andar cabisbaixo. Com o corpo coberto por roupas escuras, pesadas. Não havia vaidade. Só a opressão.
No dia seguinte, mais faxina.
Enquanto o pai dormia, ela arrumava a casa. Catava as garrafas de bebidas com alto teor alcoólico, limpava o piso suado, recolhia preservativos e cobria, com um lençol cheiroso, o pai, nu, no sofá.
Havia espaço para o afeto...
Ao fim, restou a ela pegar a velha bicicleta de tinta descascada e pedalar pelos arredores.
Na rua, as pessoas a olhavam com pena. Ou desdém.
Ao parar numa pequena praça, encostou-se numa árvore e pôs-se a ler.
Não ouvia nada. Estava concentrada. Mesmo com os grandes óculos – quebrados – escorregando pelo nariz.
Sua paz foi interrompida com uma gritaria. Por reflexo, se levantou e observou jovens da mesma idade que ela, comemorando.
Montou na bicicleta, na direção da alegria, e descobriu o que tanto brindavam.
Foram selecionados para ingressar na universidade.
- Será que eu...?
Abriu a porta da casa como um furacão e foi para a cozinha, estranhando o fato de seu pai não mais estar no sofá.
No outro cômodo, o pai, ainda despido, bebia água pela garrafa mesmo.
- Papai, chegou alguma carta para mim?
- Por quê chegaria?
- A universidade mandou a resposta...?
- Eu li. Você não foi aceita. Por que eles iriam aceitar uma merda como você?
- Onde está a carta?
- Eu já falei, desgraça. Você não foi aprovada.
- Eu quero ler!
- Tá me chamando de mentiroso?
Respirações ofegantes.
- Eu... só... queria ler, papai.
- Sua burra, estúpida! Vá procurar um emprego numa lanchonete qualquer. Você é um nada!
Novamente ela correu. Pra fora da casa.
Se encostou numa árvore, a mesma que a mãe insistiu em manter quando construíram o lar.
Sentada, chorou.
Soluçou.
O vento bateu mais forte, mais rápido, sacolejando os cabelos e quase secando as lágrimas.
Diversas folhas se desprenderam das árvores e caíram sobre ela, como se dançassem ao seu redor.
Uma cena mágica, linda, que não a impediu de derramar o líquido salgado.
Algumas folhas, bailando, voaram na direção da lata de lixo.
Pamela levantou os olhos para assistir ao espetáculo.
Sua curiosidade a fez seguir as folhas, e, no saco de lixo, viu o envelope timbrado da universidade.
Desesperançosa, ela o pegou. As folhas caíram ao chão com o brusco cessar do vento.
Pela primeira vez desde que a senhora Isley morreu, seus olhos brilharam e um sorriso surgiu.
A porta da cozinha foi aberta numa força descomunal, tanto que seu pai deixou cair a grande faca com a qual tratava um peixe.
- Filha da puta! Quer me matar? Olha o que fez! Pegue e lave essa porra!
- Você mentiu pra mim.
- O que?
- Achei a carta da universidade no lixo! Eu fui aprovada!
- Quando eu digo que você não foi, é porque você não foi!
- Eu vou para a universidade, papai.
- Não vai. Eu não vou pagar!
- Qual seu problema?
Hormônios...
- Pegue esta merda de faca, sua vagabunda!
Pamela, confusa por estar, ao mesmo tempo, enfrentando o pai e o obedecendo, segura o cabo do afiado instrumento.
- Por que não posso ir?
- Eu não vou pagar, já disse!
- Mamãe deixou dinheiro para isso!
- Mentirosa!
Um soco.
Um olho roxo.
- Você não vai!
A mão de Pamela segura a faca com a mesma força desconhecida de antes. Seu pescoço fica teso. O suor escorre pela nuca. A boca treme. O pai lhe dá as costas.
- Limpe a bagunça porque vou receber visitas hoje.
Ela não respira. Levanta o braço. O pai se afasta.
Ela se lembra de tudo o que leu sobre controle de corpo e mente.
Sobre raiva.
Sobre perdão.
E chora.
A faca cai ao seu lado, na mesa, com gotas que se esvaem dos olhos vermelhos.
No instante seguinte ela se ajoelha, e começa a passar um pano para limpar o chão.
Exausta, deita na cama.
- Por um momento meu fraquejo seria minha vontade...
Tira a carta sob a blusa e a lê, comemorando.
- Por sorte não estraguei a minha vida!
Agora restava a ela buscar meios para ingressar na universidade.
Achar o local onde o pai esconde o dinheiro e sumir do mapa.
Na noite, o processo se repetiu.
Duas mulheres chegaram, bêbadas já.
Falavam alto. Riam alto.
Em pouco tempo se ouvia as ofensas, os estalos de tapas, as provocações.
Os orgasmos.
Só não se ouvia a porta da casa abrindo ou fechando.
Isso deixou Pamela preocupada. Isso significava que eles não iriam... dormir?!
Arriscar. Era o que lhe restava.
Saiu do cômodo na ponta dos pés.
Pela fresta da porta, viu a luz acesa no quarto do pai. Correu até a sala.
“Só pode ser nessa noite...”, pensava, excitada.
Revirou os móveis, tirou livros, levantou tapetes. Não achava nada que lhe indicasse o destino do dinheiro.
A porta do quarto se abriu.
Pamela se jogou pra trás do sofá.
Três vozes embriagadas se aproximavam.
Corpos colados.
E o sexo aconteceu ali mesmo, no sofá.
As mulheres disputavam o pênis do pai, rindo. Ele só batia nas costas delas e forçava a cabeça para o sexo oral.
Uma não resistiu e sentou sobre o membro, arranhando o tórax do senhor Isley que a xingava e empurrava a cabeça da outra convidada pro meio das pernas deles.
Escondida, Pamela viu a cena.
Chocada. Curiosa.
Engatinhando, correu para o quarto do pai.
“Arriscar...”, pensava.
Lá, o cheiro de sexo. As manchas de sexo. As marcas de sexo.
Lembrou dos três na sala.
E das bocas pelo corpo.
Do ato.
Do prazer.
Pamela ficou tonta. Seus olhos reviravam. Sentiu seu corpo arrepiar e algo lhe cortar a coluna.
Balançou a cabeça, arregalou os olhos, como se saísse de um transe.
E voltou a buscar o que realmente lhe interessava.
Armários. Gavetas. Colchão. Paredes. Fundo falso. Sacola. Dinheiro. Notas altas. Muitas.
Quarto. Seu local seguro.
Abriu o baú frente à cama e de lá retirou uma mala.
Passou a jogar todas as roupas – que não eram tantas – além de um ou dois livros e da foto de Pamela e da mãe, abraçadas, tirada no ano em que ela morreu.
O silêncio voltou a reinar.
A porta da casa não fora batida, fazendo Pamela deduzir que os três se esgotaram.
Da janela, ela pegou o cacto presenteado que ainda não havia florescido.
- Me perdoa, mamãe, mas estou fazendo o certo. Fazendo o que você devia ter feito!
Tirou toda a roupa, menos o sutiã. Vestiu as novas peças, mas, ao dobrar a calcinha que usava, viu algo que a deixou arrasada.
Relutou.
Chorou.
Pensou em desistir de tudo e viver à sombra do pai.
Por um instante ela pensou assim.
Até voltar para a janela e, durante o salto da fuga, jogar sobre a cama, sua calcinha.
Molhada.
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