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Hera Venenosa #02 - Primavera

Hera Venenosa #2 - Primavera




Colégio San Thomas, Seattle


Os saltos batiam no piso frio e anunciavam a chegada – rápida e desesperada – de alguém. Os corredores longos e vazios – ao menos nessa hora do dia – causavam uma ilusão de calma.


Respiração ofegante, braço apertando a bolsa ao lado esquerdo do corpo. Ao virar a última à direita, como indicado por um funcionário, uma cena triste, jamais imaginada por uma mãe: a filha sentada no banco de madeira, com um filete de sangue escorrendo pelo nariz. 


Os olhos molhados podiam ser vistos mesmo com aquela cabeça abaixada, mirando o nada. A mãe não sabe se sente raiva, preocupação, alívio... Na porta em madeira, com um bloco de vidro esfumaçado, tinha escrito “diretoria”. Ao ser aberta, uma voz grave, mas feminina, ordena:


- Entre, senhora Isley.


Com aquele olhar tal qual um fuzil em ação, a mãe encara a filha; olhar esse que significa uma única coisa: estou muito decepcionada com você. 


Enfim, a mãe adentra. Sentada ao outro banco, no lado oposto do corredor e da filha, estava Sarah. 


Cúmplice? Culpada? Vítima?


O olhar da filha seguia perdido, como se contasse quantas linhas existiam naquele emaranhado de azulejos daquele corredor.


Na sala da diretora, água e café para ambas à mesa.


- Senhora Isley, há tempos já vinha demonstrando minha preocupação com a sua filha.
- Em que sentido?
- Ela é solitária, não interage com os colegas...
- O que há de errado nisso?
- Nada, senhora Isley. Mas isso não é bom para o desenvolvimento de uma criança. Ser anti-social...
- Ela é ignorada pelos alunos daqui, diretora.
- Tentamos diversas atividades em grupo...
- Por que o nariz da minha filha está sangrando?
- Bom... – a diretora se aproxima – Parece que Pamela andou espalhando mentiras sobre uma colega.
- Não foi a senhora mesmo quem disse que ela não fala nada, com ninguém?


A diretora ergue a sobrancelha e retira uma pasta da gaveta. Enquanto isso, a senhora Isley olha a sala, decorada por livros, troféus, diplomas...


- Veja isto. – e mostra um desenho – Em todos os desenhos dela tem apenas você e ela. Nunca o pai. Está acontecendo algo em casa? Pode estar refletindo na vida de Pamela.


Não é hora para recordações...


- O... pai dela.. é... meio... ausente.
- Pode conversar comigo, senhora Isley. Posso ajudar.


A tentação. 


A negação.


- Não se preocupe. Só que ainda não me respondeu o que houve com a minha filha.
- Bom, os outros colegas instigaram as duas para uma briga. Sarah, maior e mais... digamos, forte, teve mais vantagem.
- Minha filha brigou na escola? Não acredito!
- Quando soubemos já era tarde...


A senhora Isley coça a testa e mexe nos cabelos longos, demonstrando ansiedade.


- Sua filha é muito criticada pelos alunos. Não sei se por ela já usar óculos de grau tão elevado, ou se pelas roupas diferentes da maioria...
- Não entendo...
- Entenda, não estou dizendo que sua filha seja anormal ou coisa parecida, apenas acredito que se ela passar a se vestir de outra forma, ou entrar em algum curso extra até mesmo para se sociabilizar...
- Espera! Chega de insinuações, diretora. Pamela não é diferente, apenas é solitária. Qual o pecado nisso? Eu fui assim e nem por isso deixei de viver, de me formar, casar, ter uma família, uma vida... normal.
- Você quer que sua filha passe pelas mesmas situações humilhantes que você?
- De jeito nenhum.


A sirene de fim de aula dispara.


- Gostaria de conversar com a senhora outra vez. Seria possível?
- Sim... – responde a mãe, incrédula.
- A secretária vai entrar em contato em breve, senhora Isley. Agora, leve sua filha para casa.


A despedida. 


No corredor, a senhora Isley alisa a cabeça de Pamela. Olha para o lado e vê Sarah, que lhe dá língua. 


“E minha filha é quem tem problemas...”, pensa, enquanto caminha de mãos dadas pelos corredores, em meio àquela confusão de alunos felizes por mais um retorno à casa.


Até o carro... em silêncio. Nem uma palavra trocada.


Na metade do cainho até a casa...


- Pam, minha filha... uma briga?
- Desculpa, mamãe.
- Você sabe que brigar não resolve. Quando isso acontecer, se afaste e procure um adulto. Conte para ele o que está acontecendo e tudo vai se resolver.


Pelo retrovisor, a senhora Isley vê Pamela lhe mandando um beijo. Sorrisos


- Quando chegarmos em casa vou entregar seu presente de aniversário.
- É o que?
- Em casa você vai ver!
- Tem festa?
- Sim. Chamei seus amiguinhos, viu? 
- Sarah também?
- Ela não é sua amiga. Mas olha, vai ter bolo, balões, refrigerantes...


Quando o carro parou na frente da casa, Pamela saltou como um raio e entrou, largando os pertences pelos cômodos.


- Onde que tá, mamãe?
- Calma, filha! – grita a mãe, juntando a bagunça.


Pamela volta para a sala e encontra a mãe com os braços escondidos atrás das costas.


- É um cachorro?
- Cachorro?
- Eu queria um cachorro.
- Olha... seu presente! – e entrega um embrulho.
- O que é, mamãe?
- Abre com cuidado.


Cuidado não existe muito em crianças de – agora – seis anos. 


A mãe auxilia na abertura e o papel colorido e brilhante cai no chão.


- Não é um cachorro! O que é isso, mamãe?
- Isso, Pam, é uma planta.
- Uma planta?
- É, tipo uma árvore.
- Mas eu queria um cachorro.
- Vem cá. – a senhora Isley senta Pam no colo e segura o presente – Isso é um cacto muito raro.
- Cacto?
- Sim, uma planta.
- Mas não tem flor, mamãe.
- Por isso esse cacto é especial. Especial como você. Ele tem flor, mas a flor só aparece se você cuidar muito bem dele.
- E meu cachorro?
- Pamela... um cachorro dá muito trabalho. Não sei se seu pai gostaria de ter um cachorro em casa.
- E onde tá papai?
- Deve estar trabalhando.


Curiosidade. Isso sim é muito comum para uma criança de seis anos ter.


Ao mexer na planta, um espinho furou o dedo da criança e ficou preso. Choro.


- Pronto, meu amor, mamãe já tirou, viu?
- Essa planta é feia!
- Cuide dela e vai ver como a flor vai nascer bonita...!


E no domingo, a festinha de aniversário. Decoração com peças recicladas, mas a comida e a bebida eram propositalmente as que as crianças gostam – e exageram.


Sentada, Pam olha de cara feia para o cacto. A senhora Isley termina de arrumar a mesa.


- Onde tá papai, mamãe?
- Ele está trabalhando, meu amor.
- Saudade dele.
- Ele vem, viu?


O tempo foi passando.


A companhia não tocava.


Pamela brincava com alguns balões. A mãe olhava através da janela.


- Tô com fome, mamãe.
- Não quer esperar um pouco mais? Aí a gente canta “parabéns pra você”.
- Tá bom.


Um barulho de estouro. Choro. Um balão caiu no cacto e explodiu. A senhora Isley já acalmava a filha. 


Enfim, a companhia tocou.


- Vai abrir, minha filha!


Correndo, a menina, empolgada com o aniversario, chegou à porta. Uma mulher e um menino do lado de fora.


- Pode entrar! – disse Pamela.


O menino entrou com um presente e Pamela o seguiu. A senhora Isley foi até a porta.


- Chegamos muito cedo?
- Não, não! Não se preocupe.
- Bom, em duas horas volto para buscá-lo.


A porta se fechou. A senhora Isley olhou para a sala enfeitada e vazia. E pôs-se a chorar.


Ela não entendia o motivo de não terem ido ao aniversario de sua filha.


Pamela e o menino – Tom – estavam sentados, comendo. Restou à mãe se juntar a eles.


- Vem mais gente?
- Sim! Quem quer mais refrigerante?
- Onde que tá meu presente?
- Pam, não fale assim!


Tom entrega um pacote e a ajuda a abrir...


Uma boneca.


- Mamãe disse que parecia com você... 


E era verdade. Cabelos avermelhados, olhos verdes e pintinhas pela face.


- ...mas eu não acho porque ela não tem óculos. – conclui Tom.
- Minha mãe me deu um cacto!
- Um cacto? Que é isso?


A senhora Isley acendeu a vela e chamou os dois para os “Parabéns”.


Enquanto tirava fotos, chorava. Chorava por ninguém ter vindo. Principalmente, pelo pai da aniversariante não estar presente.


Pam assoprou a vela gritando que ia fazer um pedido.


Os três comeram bolo sentados no sofá, vendo desenho animado. E então a companhia tocou. A senhora Isley abriu e a mãe de Tom estava lá.


- Cheguei muito tarde?


Com um ar irônico – ou seria sem graça? – a senhora Isley entregou um pedaço de bolo, outras guloseimas e uma lembrancinha: um folheto sobre reciclagem. Se despediram, agradeceram e saíram.


Ainda no sofá, Pam deitava.


- Gostou da festinha, meu amor?
- Gostei. Mas papai não veio e eu não ganhei um cachorro...
- Mas ganhou um cacto! E uma boneca linda!
- Te amo, mamãe!
- Também te amo, filha. Agora vamos escovar os dentes, tomar banho e dormir!
- Não quero, mamãe.
- Vai sim! Filha, – pergunta enquanto sobem a escada – o que você pediu quando apagou a vela?
- Pode falar?
- Só pode contar para quem você ama e confia.
- Tá, mamãe. Pedi para eu ser forte como Sarah para poder proteger você quando papai te bater.

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